(Arquivo Pessoal)

 

Para invasores da Terra Indígena Yanomami, a vida dos povos originários do Brasil não vale nada. Territórios e corpos são alvo de violações diversas. O garimpo gera cicatrizes e mortes. Isso ocorre desde a década de 1980, antes da demarcação da área, nos anos 90.

Em 1991, sobre pressão internacional e às vésperas da ECO92, o então presidente Fernando Collor de Mello foi forçado a determinar a expulsão dos garimpeiros da Amazônia para demarcar a área no ano seguinte. Quando a TI foi demarcada, mulheres fizeram um ritual e queimaram as saias que passaram a usar por conta do contato com os homens do garimpo. Elas eram símbolo de todo os males que advinham daquela interação: receberam a roupa em troca de sexo.

A história se repete. Mas além das mulheres, crianças e adolescentes têm sido vítimas de abusos, tornando-se o novo alvo dos grupos de garimpeiros que se avolumam pela TI, impulsionados pela alta do preço do ouro.

A Hutukara Associação Yanomami, que tem alertado incessantemente as forças de segurança e autoridades políticas sobre os prejuízos do garimpo, traz à luz um documento com denúncias estarrecedoras. São “relatos do inferno”, como descreve o documento que traz ainda dados e imagens sobre o crescimento da devastação ambiental e doenças, como a malária. Os registros reforçam a destruição social e ambiental causada pela mineração ilegal, que cresceu 46%.

O relatório divulgado nesta segunda-feira (11), relata que três meninas de 13 anos morreram depois de serem abusadas por garimpeiros, na região central do território conhecida como polo-base Kayanaú. O documento foi construído com a contribuição de pesquisadores indígenas, antropólogos e tradutores das seis línguas faladas entre os Yanomami. O caso das mortes ocorreu em 2020, mas só depois do apanhado de relatos junto a indígenas nas aldeias mais afastadas e afetadas pelo garimpo é que elas vieram à tona.

Moradores de comunidades afetadas estão reféns dos garimpeiros, pois com a floresta, biodiversidade e rios devastados, já não podem caçar ou pescar. Em troca de comida, jovens têm sido forçados a trabalhar para os garimpeiros, que vendem porções de arroz que sobram dos acampamentos, em troca de ouro. E quando se trata de mulheres e adolescentes das comunidades assoladas pela fome, eles trocam comida por sexo. Moradores da comunidade Apiaú descrevem cenas de abuso sexual de mulheres indígenas semelhantes às de Kayanaú.

Yanomami contaram aos pesquisadores que depois de os indígena pedirem comida, os garimpeiros rebatem: “Vocês não peçam nossa comida à toa! É evidente que você não trouxe sua filha! Somente depois de deitar com tua filha eu irei te dar comida! (…) Se você tiver uma filha e a der para mim, eu vou fazer aterrizar uma grande quantidade de comida que você irá comer! Você se alimentará!’”.

Os indígenas relatam ainda, que os garimpeiros têm relação somente com as mulheres que tomaram cachaça. “Os garimpeiros não conseguem com as mulheres que não tomaram cachaça”. Na visão da maioria das mulheres indígenas, afirma o relatório, os garimpeiros representam uma terrível ameaça. São violentos e trazem um estado de terror e angústia permanente nas aldeias.

A uma pesquisadora, outra mulher contou que sente muito medo quando os garimpeiros se aproximam. “Desde que ouço falar dos garimpeiros, eu vivo com angústia”.

Sobre a morte das três moças que tinham por volta de 13 anos, uma testemunha disse: “Depois que os garimpeiros que cobiçam o ouro estragaram as vaginas das mulheres, fizeram elas adoecer’. Por isso, agora, as mulheres estão acabando, por causa da letalidade dessa doença”. 

Depois das mortes, os garimpeiros provocarem a morte dessas moças, os Yanomami protestaram contra os garimpeiros, que se afastaram um pouco, mas eles continuam se comportando mal. 

Moradores da região do Rio Apiaú relataram à Hutukara que um garimpeiro que trabalha na região ofereceu drogas e bebidas aos indígenas e, quando todos já estavam bêbados e inertes, estuprou uma das crianças da comunidade.

Uma outra denúncia narra um “casamento” arranjado de uma adolescente Yanomami com um garimpeiros mediante a promessa de pagamento de mercadoria, que nunca foi cumprida.

De posse das denúncias, o MPF de Roraima disse que já se organiza para apurar os crimes contra a dignidade sexual de vulneráveis, trabalho escravo e disseminação de bebida alcoólica entre indígenas de recente contato. O vice-presidente da Hutukara, Dário Kopenawa, ressalta que o aliciamento de minoria jovem Yanomami é a mais nova estratégia do garimpo ilegal.

Yanomami sob ataque

Titulado “Yanomami Sob Ataque: Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami”, traz propostas para combate-lo.  Com uma área equivalente à de Portugal, distribuída entre os estados de Roraima e Amazonas, a Terra Yanomami completa 30 anos de demarcação em 25 de maio de 2022.

Dario Kopenawa alerta: “Os algozes continuam os mesmos, mas com um poder de destruição muito maior”. O documento denuncia ainda, ataques de criminosos contra comunidades indígenas e traz uma cronologia completa do assédio ao Palimiu em 2021 – região onde existe uma forte atuação do grupo Primeiro Comando da Capital (PCC).

Impacto do garimpo na região de Waikás, Terra Yanomami, em dezembro de 2020 (Reprodução ISA)

Garimpo cresceu 46% em 2021

“Segundo dados extraídos do relatório, em 2021 o garimpo ilegal avançou 46% em comparação com 2020. No ano passado, já havia sido registrado um salto de 30% em relação ao período anterior. De 2016 a 2020, o garimpo na TIY cresceu nada menos que 3.350%”, ressalta o estudo da Hutukara.

Ainda de acordo com o documento, o número de comunidades afetadas diretamente pelo garimpo ilegal soma 273, abrangendo mais de 16.000 pessoas, ou seja, 56% da população total. Existem mais de 350 comunidades indígenas na Terra Indígena, com uma população de aproximadamente 29 mil pessoas.

“A extração ilegal de ouro [e cassiterita] no território Yanomami trouxe uma explosão nos casos de malária e outras doenças infectocontagiosas, com sérias consequências para a saúde e para a economia das famílias, e um recrudescimento assustador da violência contra os indígenas”, diz a Hutukara.

De fato, conforme mostra o relatório, a malária explodiu em zonas de forte atuação garimpeira, como nas regiões do Uraricoera, Palimiu e Waikás. No Palimiu, em 2020, houve mais de 1.800 casos.

“Destaca-se que a população total do Palimiu no mesmo ano era de pouco mais de 900 pessoas, ou seja, os dados apontam para uma média de quase duas [contaminações por] malárias por pessoa”, ressalta o texto.

Evolução dos casos de malária nos polos de Waikás, Palimiu e Uraricoera (Fonte: Sivep-Malária)

No começo do monitoramento, em outubro de 2018, a área total destruída pelo garimpo somava pouco mais de 1.200 hectares, com a maior parte concentrada nos rios Uraricoera e Mucajaí. Desde então, a área impactada mais do que dobrou, atingindo em dezembro de 2021 o total de 3.272 hectares.

Lideranças Yanomami e Ye’kwana protestaram contra o garimpo, vetores de doenças (ISA/Victor Moriyama)

O crescimento se acentuou principalmente a partir do segundo semestre de 2020, coincidindo perigosamente com o recrudescimento da pandemia de Covid-19. Somente em 2021, houve um incremento de mais de mil hectares. De acordo com o documento, dos 37 polos de saúde existentes na Terra Indígena, 18 possuem registro de desmatamento relacionado ao garimpo.

Uma foto recente, feita pelo vice-presidente da Hutukara, da estrutura da Unidade Básica de Saúde Indígena (UBSI) de Homoxi sendo engolida por uma cratera provocada pelo garimpo, gerou grande repercussão na imprensa e mídias sociais.

Imagem aérea do posto de saúde, casa com cobertura de telhas que aparece no registro de Dario Kopenawa

Registros aéreos feitos pela Hutukara para o relatório, no final de janeiro de 2022, mostram também a proximidade cada vez maior do garimpo das comunidades indígenas, além de cicatrizes imensas na floresta, poluição dos rios e o flagrante de aeronaves, helicópteros e outros equipamentos de altíssimo valor usados na atividade ilegal.

“O governo precisa avaliar suas ações, pois muitas operações de combate ao garimpo não surtiram efeitos. Esse documento mostra a realidade que estamos vivendo e suas consequências, de muita violência e vulnerabilidade. O meu povo está sofrendo. Pedimos o apoio da população para se unir ao nosso grito de socorro para a retirada imediata dos garimpeiros do nosso território”, convocou Dario Kopenawa.

O documento finaliza com uma série de recomendações ao Poder Público e destaca que o garimpo não é um problema sem solução, mas demanda vontade política para garantir uma atuação eficiente e coordenada do Estado e a articulação entre os
órgãos e agentes responsáveis.

(Com Hutukara)