A Semana Chico Mendes, 2020, — desta vez inteiramente digital, — realizada desde 1989, um ano após o assassinato do líder seringueiro, tem como objetivo discutir e propagar o seu legado de luta e defesa dos Povos da Floresta. A primeira mesa “Reservas Extrativistas: Uma conquista dos Povos da floresta”, contou com a participação de Júlio Barbosa, extrativista e presidente do Conselho Nacional do Seringueiro (CNS); Mauro Almeida, Ph.D. em Antropologia Social pela Cambridge University; Juliana Simões, bacharel em Ciências da Educação, foi secretária de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentável e diretora de Extrativismo no Ministério do Meio Ambiente; Mary Allegretti Antropóloga, Dra. em Desenvolvimento Sustentável, colaborou com Chico Mendes na construção do Projeto Seringueiro de educação na floresta. E contou com a mediação de Karla Martins, Produtora Cultural, Co-fundadora da Rede Fora do Eixo e membro Mídia NINJA e Casa NINJA Amazônia.
A mesa se propôs discutir sobre o histórico e avaliação dos processos que antecederam a criação das primeiras reservas extrativistas no Brasil — espaços territoriais protegidos, que têm como objetivo a preservação dos meios de vida e a cultura de populações tradicionais, com o uso sustentável dos recursos naturais da área.
Durante a conversa foi observado que mesmo após 32 anos do assassinato de Chico Mendes, ele virou semente apesar das terras áridas. Chico e demais seringueiros lutaram pelo direito à terra, mediação a fim de criar políticas públicas que asseguram as reservas extrativistas, além do reconhecimento profissional e político como seringueiro: entidade essencial aos povos da floresta.
Júlio Barbosa, presidente do CNS, falou sobre a importância da conquista das reservas extrativistas, e em como são os maiores legados da Amazônia e do Brasil. “Não dá para falar sobre territórios sem falar um pouco sobre quem era Chico Mendes, a pessoa Chico Mendes nesse processo todo. Eu, às vezes, fico me perguntando, 32 anos se passaram e parece que o que Chico pensava, naquela época, parece que alguém vinha no ouvido dele e dava um sopro dizendo que alguma coisa poderia acontecer de ruim se a gente não se organizasse, se a gente não lutasse para defender o nosso direito, eu fico pensando o momento em que estamos vivendo hoje”.
Mauro Almeida, em sua apresentação, explica que as reservas extrativistas, foram criadas em 1980 pelo movimento social de seringueiros amazônicos, que visava defender seus direitos territoriais. Segundo Júlio Barbosa, a conquista dessas reservas foi uma luta árdua.
“A nossa juventude, que vive outra realidade, imagina que a reserva extrativista foi uma conquista muito simples ou que a reserva extrativista surgiu de uma vontade de governo, de governantes, de decretar uma reserva extrativista do Chico Mendes e tantas outras que estão espalhadas pela Amazônia afora. Quando na verdade, isso é uma luta muito dura, muito difícil, que naquele momento em que nós lutávamos, hoje talvez se tenha mais a mesma disposição que a gente tinha naquela época”, observa Júlio Barbosa,
A área das reservas pertence ao domínio do poder público, e tem seu uso concedido às populações extrativistas tradicionais. As áreas particulares incluídas em seus limites devem ser desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei. Existe a preocupação com o desmatamento, principalmente, vindo de pessoas que pressionam para adentrar as áreas da reserva, No entanto, os extrativistas continuam buscando maneiras de lidar com essa pressão externa, e surpreendem com florestas protegidas e de uso sustentável.
Como Júlio explica “Quando vai para dentro da reserva, você aumenta o número de famílias que estão lá, tem uma tendência de aumentar o desmatamento porque vão para lá para explorar, fazer a sua roça, vai abrir a sua estrada de seringa, vai abrir a sua casinha, vai construir seu pasto para criar seus animais e isso a tendência é aumentar seu desmatamento, mesmo assim 31 anos depois da criação da Resex Chico Mendes, que tem 1,4 milhão de hectares de terra, nós ainda estamos apenas com 59 mil hectares desmatados, utilizados como áreas posto e agricultura”, disse.
Para o Ph.D. em Antropologia Social, Mauro Almeida, as reservas são barreiras de proteção contra o desmatamento, as áreas externas que são arrasadas. Ele cita dois dos principais problemas que estão sendo notados, atualmente, em torno do tema.
“Um é essa agressão por parte do governo, uma política bolsonarista que é explícita e declaradamente contra comunidades tradicionais, associada ao estímulo do Acre para pecuária, para a derrubada da floresta por parte dos governos estaduais. Além disso, existe um outro problema, é um retrocesso muito grande nas reservas no que diz respeito ao seu governo quando elas foram criadas na década de 90, as reservas extrativistas eram administradas por convênios entre as associações locais, cooperativas locais e o Ibama, os quais realizaram programas de estudo, pesquisa, mapeamento, o que significa que elas estavam na frente da própria prefeitura de políticas públicas, e inovações. Depois de 2000, a gente viu a degradação desse sistema, o fim da cogestão da política nacional dentro do Ibama”, salientou Almeida.
A convidada Juliana Simões, ao dizer que a luta é permanente, cita também alguns problemas preocupantes que surgiram no decorrer do tempo. “A gente tinha uma Secretaria de Extrativismo e desenvolvimento rural sustentável da Amazônia, no Ministério do Meio Ambiente. Essa secretaria vem de um processo de conquista do movimento e, infelizmente, a gente tem um retrocesso, no qual se perde essa secretaria dentro do ministério do meio ambiente, embora, se mantenha ainda uma estrutura específica para tratar de extrativismo no governo federal, só que no ministério da agricultura”.
Nos últimos anos presenciamos vários desses retrocessos em face aos direitos conquistados, depois de muita luta. O atual governo bolsonarista utiliza-se de um discurso retrógrado para culpar os povos da floresta de crimes ambientais, como as queimadas do Pantanal e o crescente desmatamento da Amazônia, aproveitando-se da atenção midiática a pandemia da Covid-19 para acobertar tais crimes. Isso faz com que os movimentos tornam mais necessários e urgentes.
Júlio Barbosa observa ainda que 32 anos depois “que se achava que a gente não ia mais precisar está realizando empates, hoje, está muito claro para mim que para a gente defender o nosso território nós precisamos nos organizarmos, se mobilizar, se unir e se necessário continuar fazendo empates contra o governo, que quer desmontar toda a política ambiental, toda a legislação, todos os regramentos que que dispõem sobre uma unidade de conservação. Lá onde o Chico estiver, eu espero que ele continue nos dando luz para a gente continuar unidos, lutando fortes para não deixar que as nossas conquistas sejam destruídas”, afirmou.
Juliana Simões lembrou que os direitos conseguidos com muito sacrifício pelos seringueiros estão na Constituição. “Essa luta do Chico Mendes, que chamou tanta atenção, foi responsável também por grandes conquistas ambientais que nós tivemos na Constituição de 1988. Embora a Constituição não tenha explicitado como fez no caso dos indígenas, quilombolas que têm uma menção explícita, o artigo 215 e 216 garantem todos os direitos iguais também para as populações tradicionais e extrativistas”, frisou.
Mauro Almeida também citou alguns direitos, que os seringueiros conquistaram após a declaração emitida em um encontro em outubro de 1985, no qual 120 representantes de quase todos os estados da Amazônia participaram. “A segunda resolução expressa a reforma agrária dos seringueiros, que dizia: “ desapropriação dos seringais nativos e as locações ocupadas pelos seringueiros sejam marcadas pelos próprios seringueiros, conforme as estradas de seringas”, ou seja, conforme a ocupação extrativistas, a ausência da divisão das terras em lotes, isso era um protesto contra o programa da reforma agrária do Incra que determinava lotes de no máximo 100 hectares geométricos ignorando a ecologia e os costumes locais”.
A luta constante de Chico Mendes foi relembrada por todos os convidados, Mary Allegretti, que falou sobre a identidade social que se forma com a floresta, diz que “no fundo tudo volta no seringal ou tudo começa no seringal”. E explica sua fala com o exemplo da relação dos seringueiros com a floresta.
“Os seringueiros impediam o desmatamento da floresta, porque havia essa identificação do valor que a floresta tinha para quem vivia dela, mas como o Chico dizia: “eu tenho certeza que a floresta em pé vale mais que a derrubada, eu tenho certeza disso, ainda vão provar”, essa identidade foi algo muito forte que ainda marca o movimento dos seringueiros”, observou Mary.
Juliana, aproveitou o momento para fazer uma retrospectiva dos anos de luta. “É interessante perceber que essa luta, esse legado do Chico Mendes, começa na Amazônia para garantir o direito à terra, ao território, mas acho que ele não imaginava ou imaginava que isso ia ganhar uma dimensão nacional. A luta do Chico Mendes hoje abrange também os castanheiros, as quebradeiras de coco babaçu, os pescadores artesanais, tem aí um monte de segmentos de povos tradicionais que estão mais evidentes nas políticas, nas leis, muito em função da luta que Chico estimulou”.
A antropóloga Mary Allegretti acrescentou ainda que “a história e a memória do Chico são algo muito forte para todos nós, como se fosse uma iluminação o tempo inteiro que a gente tem, uma perspectiva. Porque ele sabia que iria morrer, eu acho que ele não sabia que iria gerar tantos frutos e tantos resultados depois da sua morte”. Antes de se despedir, ela fez uma leitura de um texto escrito por Chico Mendes, sobre a primeira reserva extrativista, criada em 1988.
“Os seringueiros do Cachoeira, os seringais vizinhos, outros seringais distantes, organizaram-se, lutaram, mostraram para os governantes e para entidades ambientalistas e mesmo para os banqueiros internacionais que o seringal Cachoeira é uma reserva extrativista por vontade dos próprios seringueiros. O governo do PMDB tentou amedrontar os trabalhadores colocou a polícia perto, pressionou, tentou fazer valer a sua posição de não incomodar os latifundiários, o prefeito de Xapuri sempre foi inimigo dos trabalhadores da organização, dizia inclusive que os impactos e os acampamentos não resolviam nada. Atacavam os dirigentes dos sindicatos e entidades de apoio, os trabalhadores resistiram e não sobrou uma outra alternativa ao governo que ceder às pressões organizadas dos trabalhadores, a desapropriação da seringal Cachoeira divulgada na semana passada não foi nenhum presente de um governo bonzinho, mas de uma alta conquista dos trabalhadores que custou – esse é o mais grave, triste – até mesmo o sangue dos trabalhadores. Nós não temos que dizer muito obrigado a ninguém, a desapropriação do Cachoeira foi uma conquista nossa…”
Chico Mendes, 31 de julho de 1988.