O projeto político em andamento no Brasil, em que pessoas são ameaçadas e criminalizadas por salvaguardar seu território, ameaça a sobrevivência de defensores da terra preservada e livre. A situação se agrava com constantes investidas legislativas que em nome do desenvolvimento econômico, vão devastando tudo: a floresta e a vida que há nela.
De outro lado, lideranças do campo sabem que ao resistir, podem ser alvo de uma sentença de morte. E assim, vão vivendo um dia de cada vez, ocupando espaços de fala até quando lhes for dada a chance de abrir os olhos. O medo ronda, mas não os cala.
Foi assim com José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria Espírito Santo, que lutaram o quanto puderam, até a manhã do dia 24 de maio de 2011, quando foram mortos em uma emboscada perto de casa, no Assentamento Praialta-Piranheira, em Nova Ipixuna (PA). Os executores do crime, os pistoleiros Alberto Lopes do Nascimento e Lindonjonson Silva Rocha cumprem pena de mais de 40 anos, mas o mandante, José Rodrigues, que foi sentenciado a 60 anos de prisão em 2016, a polícia ainda não conseguiu capturar.
A Casa Ninja Amazônia e Mídia Ninja tem acompanhado todos os desdobramentos do caso e trabalha por sua visibilidade somando forças às famílias de José Cláudio e Maria. Para tanto, realiza a Missão Marabá, com objetivo de trazer mais uma vez à luz, o histórico de luta dos dois, bem como seu legado.
O sangue de Zé e Maria escorre pela Amazônia, região que concentra o maior número de assassinatos no campo do país. Junto a outros ativistas, como Chico Mendes e Dorothy Stang, eles simbolizam a luta de milhares de pessoas e hoje são reconhecidos como dois importantes nomes do ambientalismo mundial. Mas de outro lado, o casal faz parte dos tristes números de 2011, em que 30 guardiões da floresta foram mortos por defender seu território, segundo relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Em 2020 foram 18 assassinatos no Brasil, dos quais 15 aconteceram na região Amazônica.
Quem conviveu com o casal ou que admira sua história, costuma participar anualmente da Romaria dos Mártires da Floresta, em Marabá. Seguem rumo a Nova Ipixuna e acampam no quintal sob a proteção de Majestade, castanheira centenária adotada por Zé e Maria e assim batizada. Certamente que eles permanecem espiritualmente ligados a ela. Neste ano, a celebração é virtual, transmitida pelas redes sociais. Apenas familiares participam.
O trajeto da romaria é de 8 km. “Começou em 2016, mas desde 2011 era realizado um ato. A romaria começa do lugar onde foram tombados, em direção à casa deles. Nós refazemos o caminho. A segunda parada é no curral onde os vaqueiros viram os dois passar. O outro, na escola e acenaram para Laísa que estava dando aula. Zé buzinou. Foi a última vez que se viram. Quando chegamos à majestade sentimos o amor que a natureza tem para nos dar. Por fim, tem comidinha na casa de Zé e Maria e no dia seguinte, outra celebração ao pé da Majestade”.
Filho da floresta
Meses antes de morrer, em entrevista ao jornalista Felipe Milanez, Zé Cláudio manifestou a pureza de seus pensamentos ao comparar as árvores a irmãs. “Eu sou filho da floresta eu vivo delas, dependo delas. Quando eu vejo uma árvore dessa, em cima de um caminhão, indo para serraria, me dá uma dor que é o mesmo que estar vendo um cortejo fúnebre levando o ente mais querido que você tem”.
Pela comoção popular mundial e pelo empenho da família o histórico de luta dos dois continua sendo lembrado. É um chamado para que estejam vivos os sonhos de Maria e José. A Majestade ficou órfã, mas ganhou irmãos do mundo inteiro.
Atualmente, o instituto, além de preservar a memória dos ativistas e não medir esforços para que justiça seja feita com a prisão do mandante do crime, atua no suporte de ambientalistas que correm risco de vida.
O amor floresce nas eleições
A irmã de Zé, Claudelice Santos é quem está à frente da organização. No primeiro episódio de uma série de podcasts produzidos em razão dos dez anos do assassinato do casal, ela conta como os dois se conheceram.
“Foi durante as eleições de 1986. Ela era mesária, como era professora, foi chamada. E ele votava nessa sessão. Então eles se olharam e se gostaram e logo começaram a namorar. Chegou um ponto em que estavam morando juntos”.
Maria era da região de São João do Araguaia, de família ribeirinha. Para estudar, a família foi para Marabá, mas os pais não se acostumaram e então eles a deixaram em casa de família para estudar.
No mesmo episódio, o áudio de José, gravado por Milanez é reproduzido: “Eu era fora de movimento social, eu não fazia parte. Eu cuidava da minha vidinha, cuidava da minha roça, criava meu porco eu vivia no meu cantinho”. Na década de 1980, o avô Nelson comprou um pedaço de terra, onde hoje é a Praialta Piranheira. A comunhão com o meio ambiente já motivava sua existência.
“Mas antes eram terras devolutas e não tinha regularização. Assim que ele conheceu a Maria, decidiram que iam morar lá. Lembro da primeira roça de arroz, das dificuldades que passávamos quando íamos para lá. Basicamente vivíamos da extração da castanha do Pará e das pequenas roças”, relembra.
A liderança desponta
Depois de um tempo vivendo lá e motivado pela manutenção do modo de vida tradicional, José começou a se interessar pelo “papo de preservação”, como revela um áudio seu.
“Comecei a me interessar pelo papo de preservação porque eu já era meio um ambientalista. Em 1997 criamos o projeto de assentamento e uma associação aqui dentro e me colocaram como presidente da associação”. Maria assumiu a liderança na sequência.
Começava aí a trajetória do casal em defesa da floreta. Em áudio, Maria revela o que pensava daquele pedaço de terra que ocupava: “Essa terra, que chamamos de nossa, é da união e tenho a obrigação de cuidar dela procurar viver da maneira melhor possível com ela e mostrar para sociedade que é possível se viver dos recursos da floresta de maneira sustentável”.
Terra como fonte de sustento
Essencialmente, essa era a vida do casal: cuidar da terra e obter sustento dela, como agricultores e extrativistas. Claudelice destaca que a professora Maria não parava de estudar. “Ela estudou pelo Pronera, o Programa Nacional de Educação da Reforma Agrária e ela se desdobrava em ser a mulher acadêmica, estudiosa e pesquisadora”.
E assim, a vida deles era compartilhar os dias e os afazeres domésticos, incluindo o plantio e o extrativismo e ainda, “em se desdobrar entre a luta pela preservação e participar ativamente dos processos sociais da comunidade. Eram prestativos com a família e com a comunidade”, enfatiza Claudelice.
Pressão madeireira
O casal militava contra a extração ilegal e tráfico de madeira. “A gente tinha uma cobertura vegetal de 85% de floresta nativa onde concentrava castanha e cupuaçu. Hoje resta pouco mais de 20% dessa cobertura já fragmentada em muitos lugares. É um desastre para quem vive do extrativismo como eu, que sou castanheiro desde os 7 anos vivo da floresta, protejo ela”, disse a Felipe Milanez em 2011.
“Ah é uma arvorezinha, uma madeirinha, tudo é pequenininho, mas o rombo na floresta fica imenso, é irreparável”, corroborou Maria.
Como sempre, José falava de árvores como se fossem pessoas, pois ele reconhecia nelas, fonte de vida. “Você sente quando vai cair, você escuta o gemido dela, ela range o tronco. E aí você vê as folhas como que rogando a Deus. Aí vem o estrondo. Mais um gigante da selva tombou”.
Junto com a regularização do assentamento, foi se intensificando a pressão de madeireiros. “Vivo em constante pressão. Vivo aqui de orelha em pé de noite, a gente não consegue dormir direito, cachorro quando late você fica alerta”, disse José, como que antevendo que alguma coisa aconteceria a ele.
“E madeireiro já veio aqui oferecer propina. Sabe que a gente não vai receber e adiante eles podem pegar a gente”, denunciou Maria.
José queixava-se que não havia legislação para cortar árvores como a castanheira, mogno, andiroba, copaíba, mas ainda assim havia um mercado consumidor. “Porque não procuram a origem? Aqui fica o estrago, o buraco”.
Por sua vez, Maria sonhava com o dia que as serrarias e carvoarias fossem fechadas. “Denunciando madeireiro, denunciando todo mundo, fotografando madeireiro, foto de carvão, todo esse tipo de ilegalidade que a gente vê dentro do assentamento. Tem gente que diz que não vale a pena. Para mim vale a pena. Para mim, a pior coisa do ser humano é a omissão. Saber que é um risco, isso aí não tenho dúvida, dizer que não tenho medo, seria hipócrita”.
Em registros do evento TEDx Amazônia, José também fala sobre a sensação, mas o amor pela floresta era muito maior. “Vivo da floresta, protejo ela de todo jeito. Por isso eu vivo com a bala na cabeça a qualquer hora. Denuncio os madeireiros, denuncio os carvoeiros, por isso, eles acham que eu não posso existir. Eu posso estar conversando com vocês daqui um mês e vocês podem receber a notícia de que eu desapareci. Me pergunta, ‘tem medo?’. Tenho, sou ser humano, tenho medo. Mas o meu medo não empata de eu ficar calado. Enquanto eu tiver força para andar, denunciarei todos aqueles que prejudicam a floresta”.
Foram utilizados como fonte, áudios do podcast 10 anos sem Maria e Zé Cláudio e registros do TEDx Amazônia