Números apresentados pela 35ª edição da publicação anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT) revelam que 2020 foi o ano de maior número de conflitos no campo já registrados desde que a série foi criada, em 1985.
Houve um aumento de 8% do número de ocorrências em relação a outro ano extremamente violento, que foi 2019. Os registros apontam um salto de 1903 casos em 2019 para 2.054, em 2020. O levantamento indica ainda um acréscimo de 2% no número de pessoas envolvidas nesses conflitos: de 898.635, em 2019, passou para 914.144, em 2020, quase 1 milhão de pessoas.
A CPT avalia que os números sejam reflexos do projeto político de Jair Bolsonaro, afinal, os maiores índices de conflitos foram registrados em seu governo. O discurso político que estimula a ilegalidade, como garimpos, desmatamento e grilagem de terras e de outro lado, iniciativas legislativas em tramitação no Congresso e assembleias legislativas estaduais que pressionam comunidades tradicionais e ameaçam unidades de proteção ambiental, estimulam conflitos.
“Em terceiro lugar, está o ano de 2016, ano do golpe que retirou Dilma Rousseff da presidência e instituiu Michel Temer. Essa conjuntura política desastrosa dos últimos anos tem aumentado a violência no campo”, afirma a CPT.
Conflitos por terra
Quando isolados os dados por tipo de conflito, os relacionados à terra alcançaram a triste marca de 1.576 casos, dos 2.054 registrados. O que equivale a uma média diária de 4,31 conflitos, que envolveram 171.625 famílias brasileiras. Segundo análise da CPT, o índice de casos é 25% superior a 2019 e 57,6% a 2018. De 1 mil ocorrências em 2018, passou para 1.260 em 2019.
De outro lado, quando analisada a média diária de conflitos, houve um salto ao longo dos anos, atingindo seu ápice nos anos de 2019 e 2020. “Se entre 1985 e 2009 a média anual das ocorrências era quase sempre abaixo de 3,0% do total, a partir de 2010, essa porcentagem foi sempre superior a 3,0%, tendo aumentado consideravelmente em 2019 (5,78% do total) e em 2020 (7,23%). O número de conflitos por dia, que tinha sido de 2,74 por dia em 2018, passou a 3,45 em 2019 e 4,31 em 2020”.
Populações tradicionais
As análises de pesquisadores apontam que muitos conflitos perduram ao longo do tempo, por anos e até décadas, sobretudo quando se tratam das pressões sofridas por populações tradicionais, vítimas de constante tentativas de invasões a seus territórios.
Dos 1.576 casos de conflitos de terra registrados em 2020 e que envolveram 171.625 famílias brasileiras, 656 ocorrências e 96.931 famílias eram de comunidades indígenas.
No que diz respeito a invasões, 81.225 famílias tiveram suas terras e territórios invadidos em 2020, um aumento de 102,85% de 2019 para 2020.. É o maior número desse tipo de violência já registrado pela CPT. Dessas famílias, 58.327 são de indígenas, ou seja, 71,8%.
Conflito pela água
Na perspectiva de casos de conflitos por disputa pela água, eventos de grandes proporções, como o derramamento de óleo no litoral brasileiro e os desastres provocados pelo rompimento da barragem em Brumadinho, causado pela mineradora Vale S.A. aumentaram o número de ocorrências em 2019 (502). Por consequência, em 2020 (350), houve uma redução de 30% em relação ao ano anterior.
Mas os conflitos pela água em 2020 foram marcados por quatro assassinatos, cujo caso ficou conhecido como o Massacre do Rio Abacaxis, no Amazonas. Esse foi o maior número de mortes em conflitos pela água já registrados pela CPT, desde que foi separado esse conflito dos referentes à terra, a partir de 2002.
Em agosto, Josimar Moraes Lopes, indígena Munduruku, e três ribeirinhos foram assassinados na região do Rio Abacaxis. Consta ainda o assassinato de dois policiais militares e, possivelmente de um traficante.
Agentes da CPT Amazonas relataram se tratar de uma situação complexa, que envolve camponeses e indígenas, de um lado, pescadores ilegais e policiais do outro, e ainda um terceiro grupo formado por traficantes de drogas.
Conforme o Ministério Público Federal (MPF), desde o ano de 2007 os indígenas denunciam a ocorrência de conflitos na região, causados pelo turismo de pesca esportiva, o garimpo irregular, o tráfico de drogas e o uso de armas de fogo. Nesse contexto, as comunidades locais são ameaçadas.
Fragilização trabalhista
A crise sanitária, sob gestão omissa de Bolsonaro, também agravou a situação de trabalhadoras e trabalhadores do campo. O relatório anual do CPT mostrou que houve aumento dos conflitos trabalhistas, 96 ocorrências, o maior número em 6 anos, com 1.104 trabalhadores e trabalhadoras vinculados a essas ocorrências, um aumento de 25% em relação ao ano de 2019 (883 casos).
Todos os anos, desde 2015, cresce o número de pobres e, contraditoriamente, cai o número de pessoas beneficiadas pelo programa Bolsa Família ou outro programa de assistência social. Essa realidade piorou com a pandemia da Covid-19.
O procurador do trabalho, Thiago Muniz analisa que a partir de 2016 esse cenário se agravou.
“O golpe parlamentar é um marco muito nítido, um verdadeiro divisor de águas no enfrentamento ao trabalho escravo contemporâneo: a partir de então, a desigualdade aumentou, os assentamentos diminuíram, o autoritarismo renasceu, a proteção sociolaboral evaporou e as políticas de enfrentamento têm sido paulatinamente corroídas”.
A desassistência aos trabalhadores e povo pobre, tanto das cidades quanto do campo, durante a pandemia aumentou a vulnerabilidade dessas pessoas que acabam, por falta de perspectivas, sendo aliciadas e vítimas de práticas criminosas.