A simples abertura do edital de licitação para pavimentação de trecho da BR-319 fez saltar pontos de desmatamento e de queimadas no entorno do trecho. A rodovia que é a única ligação terrestre do Amazonas com as demais regiões do país liga Manaus a Rondônia, cruzando uma região com 63 terras indígenas e outras unidades de conservação.
Por falta de estudos de impacto ambiental, o início das obras de trecho denominado Lote C, que liga 52 quilômetros entre os km 198 e 250, chegou a ser suspenso por decisão judicial por este motivo. Mas já foi liberado. Uma aprovação ao que parece, pré-determinada.
O andamento das obras que deve começar logo, preocupa pela devastação ambiental que se descortina em uma região intocada. O ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas comemorou nas redes sociais nesta terça-feira (15) a chegada de máquinas ao trecho das obras.
O próximo foco do Ministério da Infraestrutura é o Trecho do Meio, do km 250 ao km 655, mas a obra ainda precisa de licenciamento. O Lote C é apenas o primeiro trecho a ser retomado. Ele custará R$ 165,7 milhões aos cofres públicos.
O surgimento de novos pontos de desmatamento ao longo da BR-319 é alvo de alerta de estudo realizado por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do Departamento de Geografia e Ciências Atmosféricas, da Universidade do Kansas (EUA). Segundo o grupo, isso ocorreu principalmente, de julho a setembro de 2020, depois da abertura do certame. E a tendência, é piorar.
“Isso sugere a ausência de uma estratégia clara para o desenvolvimento sustentável e a conservação da Amazônia brasileira”. Eles ressaltam que a região está enfrentando um boom de desmatamento nos últimos anos, agravado desde 2019 e que decorre do enfraquecimento da política ambiental brasileira.
“Durante este período de retrocesso ambiental, grandes projetos de infraestrutura estão sendo impulsionados, apesar de seus efeitos negativos sobre a biodiversidade e conservação e baixos benefícios econômicos”, diz trecho do artigo.
Além dos efeitos ambientais negativos, os pesquisadores destacam que o desmatamento associado a esses projetos não traz bem-estar social para as comunidades locais, mesmo que seja esse um dos argumentos utilizados. Eles geram desmatamento, ameaçam a biodiversidade, conservação e serviços ecossistêmicos.
Desmatamento e prejuízo econômico
Os autores do artigo analisaram 75 projetos rodoviários que representam 12 mil km de estradas que impactarão o meio ambiente com 45% deles gerando até perdas econômicas.
Se fossem cancelados apenas esses projetos que vão trazer prejuízos, 11 mil km² de desmatamento poderiam ser evitados, o que representa ainda, uma economia de U$ 7,6 bilhões de dólares, o equivalente a mais de R$ 38 bi.
Como eles revelam, a BR-319 é um dos casos mais graves. “O simples ato de comunicar a intenção de implementar tais projetos inconsistentes é suficiente para potencializar a consolidação de novos focos de desmatamento”. A rodovia começou a ser construída no período da Ditadura Militar, em 1973 e foi abandonada em 1988.
Diante dos perigos que se descortinam com a iminência da continuidade das obras em áreas preservadas e a falta de avaliações de impacto, especialmente na região mais intocada da estrada – denominada Lote C e composta por floresta -, é que o Ministério Público Federal havia acionado a Justiça que, por fim, determinou a realização de um estudo prévio. Ao que parece, o governo federal conseguiu viabilizar o que desejava.
O Ministério Público Federal brasileiro havia caracterizado a publicação dos editais após a decisão judicial como uma “afronta” ao sistema judiciário. Havia pontuado ainda que a ação de pavimentar a rodovia antes de um adequado estudo de impacto ambiental implicaria até mesmo no descumprimento de exigências estabelecidas nas convenções sobre clima e biodiversidade.
Como sempre, comunidades indígenas impactadas não foram consultadas.
Boom de desmatamento e focos de queimadas
Diante do estudo macro, que leva em conta as 75 obras analisadas, pesquisadores estão preocupados com estimativa de desmatamento que pode chegar a 170 mil km² até 2050. Ou seja, a emissão acumulada de dióxido de carbono (CO2) associada ao desmatamento pode quadruplicar até 2050 quando comparada à taxa de emissão de CO2 de 2019.
Especificamente no caso da BR-319, depois da divulgação do edital, os alertas de desmatamento entre julho a setembro de 2020 na zona de influência direta da rodovia BR-319, somando 16,42 km², 25% superior à média do período desde o início das análises do Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (DETER) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), a partir de 2016.
O número de focos de queimada também subiu: o programa oficial de monitoramento de incêndios brasileiro} revelou que entre julho e setembro de 2020, houve o maior número de incêndios ativos durante a década de 2011-2020 na zona de influência direta da rodovia BR-319.
“Iniciativas para integrar a Amazônia brasileira são necessárias, mas ignorar um planejamento ambiental estratégico e seguir princípios-chave de conservação e desenvolvimento sustentável nesta região sensível colocam em risco a eficácia desses investimentos maciços”, diz trecho do estudo conduzido pelos brasileiros Guilherme Mataveli, Michel Chaves, Luiz E.O.C. Aragão (os três do Inpe) e Nathaniel A. Brunsell (Universidade do Kansas)
Acesse o artigo na íntegra aqui.
Mais desmatamento à vista
O doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), Philip Martin Fearnside há anos vem alertando sobre a retomada das obras da BR-319.
Em artigo publicado no site Amazônia Real titulado “BR-319 e a destruição da floresta amazônica” destacou que ao conectar Manaus ao “arco de desmatamento” em Rondônia, atores como grileiros e sem-terra podem ser esperados a migrar para a Amazônia central, e continuar pela rede de estradas já existentes para outras partes do Amazonas e para Roraima.
“Há planos para várias estradas laterais ligadas à BR-319 que levariam os desmatadores para além das áreas protegidas que foram criadas ao longo da rodovia. Uma dessas estradas planejadas, a AM-366, abriria o grande bloco de floresta intacta ao oeste do rio Purus, ligando a BR-319 a Coari, Tefé e Juruá. Sendo estradas estaduais, elas seriam construídas sem licenciamento federal”.