Foto: Greenpeace

A Terra de Direitos lança o estudo “Sem licença para destruição – Cargill e violação de direitos no Tapajós (Santarém)”, que aponta uma série de irregularidades e desrespeitos ao processo de licenciamento ambiental para instalação do Porto da Cargill, multinacional de origem americana que produz e  processa alimentos. A companhia opera um terminal portuário em Santarém, no Pará, há quase 20 anos, impactando fortemente as comunidades tradicionais da região, que se uniram para cobrar do Governo do Pará compensações e mitigações da instalação do empreendimento.

No momento em que os olhos do exterior se voltam para a política ambiental brasileira, a renovação da licença, solicitada pela companhia à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (SEMAS), em agosto de 2020, pode prejudicar a economia local, além dos já conhecidos impactos sociais e ambientais. O levantamento realizado pela Terra de Direitos conclui que, apesar do descumprimento de condicionantes e do Estudo de Impacto Ambiental do Porto elaborado pela empresa com uma série de lacunas, as licenças de operação da Cargill continuam a ser renovadas.

“A Cargill segue sem uma licença de operação válida desde 22 de novembro de 2020. É preciso garantir que o órgão ambiental não conceda nova licença antes da retificação dos Estudos de Impacto, com a devida inclusão dos Estudos do Componente Indígena e Quilombola e com a reparação dos danos causados até agora. Somente a realização de uma efetiva Consulta Prévia, Livre e Informada de indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais afetadas poderá garantir a continuidade de um processo de licenciamento ambiental em consonância com a legislação em vigor e com os princípios de direitos humanos”, afirma Pedro Martins, assessor jurídico da Terra de Direitos.

Denúncias – avanço do agronegócio e destruição da memória dos povos tradicionais

Uma das principais denúncias que o estudo traz é sobre o avanço do agronegócio na região, atrelado ao crescimento da produção de soja com a chegada da Cargill, que mudou os processos de ocupação e uso do solo. O fato de haver um comprador local, como a Cargill, impulsionou a migração de agricultores, causando pressão sobre áreas de floresta para cultivo em Santarém. Desde o início do processo de instalação da empresa na região, Santarém perdeu uma área de mais de 1 mil km² de floresta – o equivalente a mais de 100 mil campos de futebol. Esse número é relacionado ao desmatamento acumulado entre 2000 e 2018, com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

A maior quantidade de área desmatada no município foi registrada em 2008 – no ano, foram 3.084 hectares desmatados, segundo dados do Terrabrasilis/INPE. Em 2019, foram desmatados 1.937 hectares em Santarém. O município de Belterra, que é quase quatro vezes menor geograficamente do que Santarém e com grande parte do território ocupado pela Floresta Nacional do Tapajós, perdeu mais de 158 km² de floresta em 18 anos, o equivalente a mais de 15.800 campos de futebol.

“Com a supressão da vegetação local, há um aumento da sensação térmica. Além disso, o porto ocasiona perda de área de pesca, invasão de espécies exóticas e impacto na qualidade do peixe, com maior ocorrência de deformidades e menor tempo de conservação do produto”, explica.

Conflitos fundiários também passaram a ser um problema na região. A chegada da cultura da soja nos municípios de Belterra, Mojuí dos Campos e Santarém contribuiu para o processo de valorização fundiária. Uma pesquisa levantada no estudo indica que, entre 2000 e 2005, 90% das áreas do entorno da BR-163 mudaram de proprietário, principalmente, no trecho entre Santarém e Belterra. A valorização da terra foi um dos fatores que pode ter contribuído para a venda de propriedades de pequenos agricultores, mas não foi o único: relatos trazidos pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR-STR) apontam que, em grande parte, agricultores familiares foram pressionados a abandonar suas terras. Nesse cenário, as mulheres são as mais prejudicadas, obrigadas a sair de suas terras, aumentando a insegurança alimentar das famílias.

Foto: Divulgação Cargill

Outro grande impacto apontado pelos povos da região em relação à instalação da Cargill também tem relação direta com a expansão do agronegócio. Com a chegada da empresa e o estímulo à produção de soja, as comunidades – principalmente do Planalto Santareno, entre os municípios de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos – começaram a sentir os efeitos da aplicação de agrotóxicos nas plantações, que estão cada vez mais próximas à área urbana e a equipamentos como escolas, postos de saúde e hospitais. Uma pesquisa de mestrado em Desenvolvimento Sustentável apresentada na Universidade de Brasília, em 2019, identificou que ao menos um dos corpos hídricos das três cidades do Planalto Santareno estão contaminados com, ao menos, um dos ingredientes ativos (a principal substância química dos agrotóxicos) avaliados. A aplicação de agrotóxicos também tem ocasionado a extinção em massa de abelhas nativas e outros polinizadores da região, o que pode causar efeitos diversos.

O estudo da Terra de Direitos ainda traz uma série de denúncias embasadas em relatos dos povos da região. Com a instalação do terminal Portuário da Cargill, habitantes de Santarém tiveram que se despedir de uma das principais áreas de lazer urbana da cidade. A construção dos silos para armazenamento de grãos e de um dique de 580m deu fim à conhecida Praia de Vera Paz. Além disso, a instalação das estruturas do terminal representou a destruição de parte de um dos maiores sítios arqueológicos da região. Localizado entre os bairros Laguinho e Mapiri, o Sítio do Porto guarda vestígios de ocupação pré-colombiana do território de cerca de 10 mil anos. Indígenas relatam o desrespeito à ancestralidade e uma violação grave da cosmovisão indígena.

“A ausência da escuta aos povos tradicionais significa que a realidade de impactos sofridos por aldeias e quilombos, assim como de pescadores e pescadoras, agricultores e agricultoras familiares foi omitida. Durante os 22 anos da chegada da empresa na região, os grupos étnicos não participaram da elaboração de condicionantes do empreendimento e foram excluídos de qualquer processo de participação, apesar da série de marcos legais que garantiriam esse direito”, conclui o assessor jurídico da Terra de Direitos .

Sobre a Terra de Direitos

A Terra de Direitos, organização que surgiu em Curitiba (PR), em 2002, e que está há 11 anos no Tapajós para atuar em situações de conflitos coletivos relacionados ao acesso à terra e aos territórios rural e urbano. Acredita na soberania popular e apóia as lutas coletivas dos movimentos sociais, de povos e comunidades, por reconhecimento e garantia de direitos. Entende que a democracia e a justiça social são fundamentais para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, especialmente no Brasil, terra de muitos povos, culturas e identidades. Atua pelo pleno acesso à justiça, reivindicando um sistema de justiça que reflita a diversidade e a pluralidade da sociedade brasileira. www.terradedireitos.org.br