
Casal de ambientalistas defendia floresta em pé e modos tradicionais de vida (Foto: Acervo Pessoal/Reprodução Mídia Ninja)
Reconhecidos pelo combate à extração ilegal e tráfico de madeira em seu território, os agricultores e extrativistas José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria Espírito Santo foram mortos em 24 de maio de 2011, próximo à entrada do Assentamento Extrativista Praialta Piranheira, na zona zural de Nova Ipixuna (PA), onde moravam.
A todos Zé Cláudio reforçava seu compromisso em defender a floresta viva e sabia dos riscos que corria, como disse ao jornalista Victor Gomez em novembro de 2010.
“Eu defendo a floresta em pé e seus habitantes, em pé. Mas devido ao meu trabalho, sou ameaçado de morte pelos empresários da madeira, camaradas que não querem ver a floresta em pé e isso tem me trazido problemas quando se fala da vida. A gente quer permanecer vivo, igual eu luto pela floresta viva. É um bem que fica para as futuras famílias que vêm aí”.
Naquele ano, como indica levantamento da Comissão Pastoral da Terra, o casal entrou para as tristes estatísticas de mortes decorrentes de conflitos no campo, pois eles somaram ao triste grupo de 30 pessoas assassinadas por lutar por seu território. Maria também foi incluída nos registros de assassinatos contra mulheres, como uma das duas vidas perdidas em 2011.
A coragem e ousadia que Zé e Maria tinham de denunciar práticas ilegais, os colocavam sobre a mira de malfeitores e as ameaças se avolumavam ano a ano desde que se estabeleceram por lá e o assentamento foi criado, em 1997. Até mesmo quando buscavam meios oficiais, eram vítimas de injustiça. Houve um tempo em que funcionários de órgãos ambientais que realizavam as vistorias chegavam a apontá-los publicamente como os autores de denúncias. Mas mesmo sem a acolhida que mereciam, sem a proteção do Estado, não esmoreciam no combate a crimes ambientais e violação de direitos humanos.
“Entre liderança, o cara que defende o meio ambiente, e o capital, os caras vão ficar do lado do capital. O dinheiro movimenta pessoas que têm como pensamento, ganhar mais dinheiro. Que não é o meu caso”, disse José na entrevista ao Victor Gomez. Meses antes do atentado contra sua vida, a outro jornalista, Felipe Milanez, teria dito com ares de resignação: “vivo com a bala na cabeça”.
A Casa Ninja Amazônia e Mídia Ninja realizaram a Missão Marabá no início deste mês para ir a fundo na história de vida do casal de defensores da floresta, do assassinato em retaliação à sua luta até o julgamento dos criminosos. Também refizemos caminhos percorridos por eles e nos encontramos com pessoas que tiveram suas vidas transformadas pelos ideais do casal. Zé e Maria deixaram seu legado e ainda hoje inspiram defensores no mundo todo.
Também acompanhamos a irmã de Zé Cláudio, Claudelice Santos nos preparativos da Romaria dos Mártires da Floresta, realizada anualmente em memória deles e de outros defensores que tombaram por suas lutas. Nesse ano, apenas familiares participaram do evento transmitido via redes sociais. Ela não só a mantem a memória viva, como busca por justiça. À frente do recém-formalizado Instituto Zé Cláudio e Maria, ainda dá suporte a defensores da terra livre, dos direitos humanos e do meio ambiente que são ameaçados por sua luta.

Vista aérea da casa de Zé e Maria, rodeada por árvores; eles vinham sendo alvo de tocaias (Oliver Kornblihtt/Mídia Ninja)
Tocaia
Claudelice contou à reportagem que além de constantes ameaças que chegavam por “recados” ao casal, eles eram vigiados constantemente. “Zé falava alto. Eu acredito que eles só conseguiram surpreender os dois porque sabiam que eles sairiam cedo no dia seguinte. Certamente que tinha alguém na beirada da casa os escutando de noite. Não tinha como alguém saber. A única pessoa que sabia que eles sairiam era uma vizinha, que era amiga e que emprestou dinheiro para eles”.
Normalmente, conta ela, eles entravam para casa às 17h30 e só saiam no dia seguinte por medo de serem atacados no cair da noite.
Naquele dia, depois de passar na casa da vizinha, seguiriam rumo a Marabá. Lá pegariam mais um pouco com outra amiga para então enviar dinheiro a uma irmã de Zé Cláudio, que morava em Tocantins e estava com problemas de saúde.
Nunca chegaram a Marabá e nunca mais voltaram para casa.
“Eu digo que mataram a gente também. Mas a gente usou toda nossa dor para lutar por justiça e para dizer que eles permanecem vivos na nossa memória. A vida continua para aqueles que acreditam que a floresta é viva”.
Ambos, foram mortos a tiros. No local do assassinato, Claudelice nos revela como foi aquele dia fatídico.

Claudelice aponta local dos assassinatos; uma cruz foi colocada na estrada em memória deles (Oliver Kornblihtt/Mídia Ninja)
Zé e Maria estavam de moto e quando tiveram de reduzir para passar em uma ponte, os pistoleiros, que estavam de tocaia, os atingiram. “O vaqueiro viu quando os assassinos passaram às 5h30 e quando Zé e Maria passaram também, duas horas depois. Há meses eles vinham estudando uma maneira de matá-los. Tinha um pontilhão, tinha uns paus parados, lama. Eles precisariam diminuir a velocidade para passar. O crime foi premeditado”.
Ela acredita que não teriam agido sozinho. Que outras pessoas podem ter dado suporte para que o casal fosse assassinado, mas nunca entraram no rol de acusados. .
Os executores são Alberto Lopes do Nascimento e Lindonjonson Silva Rocha, que hoje cumprem pena de mais de 40 anos. Mas o mandante do crime, José Rodrigues, a polícia nunca conseguiu capturar. Sentenciado em 2016, a pagar 60 anos no regime fechado, segue foragido. “Eles haviam chegado no final de 2009 e os juraram de morte. A Justiça não foi feita por completo”, diz Claudelice.
Ela conta que antes da cruz, havia uma placa in memoriam. “Era uma fala dele no TEDx Amazônia: ‘A mesma coisa que fizeram com Chico e com a irmã Dorothy querem fazer comigo’. E essa placa foi sendo destruída por tiros. E então colocamos a cruz”. Como que se pedissem respeito.
Claudelice esteve no local logo que recebeu a notícia. “Fui com a polícia e o carro do IML atrás. Eu já sabia que Zé estava morto, mas não sabia que Maria também estava. Foi a cena mais terrível e dolorosa que já vi. Eu queria entrar na terra de tanta dor. O corpo dele foi jogado nesse pé de caju”, aponta.
“E o corpo de Maria estava mais para frente. Os assassinos ficaram posicionados de um modo que deram os primeiros tiros de dentro da mata e quando eles tombaram, terminaram o serviço. Ali na entrada tem uma entrada. Foi ali que esconderam a moto e onde foi encontrada uma touca com fios de cabelo”. A análise de DNA apontou para os irmãos Lindonjonson e Zé Rodrigues. “Era de um dos dois, mas os dois estavam envolvidos. Meu irmão estava sem a orelha direita”. Uma prova do serviço realizado.
Mortes premeditadas
Condenado pela Justiça por ser mandante do crime, José Rodrigues chegou ao assentamento no final de 2009. Comprou um pedaço de terra, e perto haviam três famílias e muita floresta. Zé e Maria costumavam confrontar pessoas que se dedicavam à ação ilegal de acúmulo de terras dentro do assentamento.
“Laranjas” passariam a comprar terras e revender a José Rodrigues. O casal discordava da concentração de terras nas mãos de poucos, que tinham como objetivo devastar o território. E ainda mais em se tratando de um assentamento que tinha como propósito a multiplicação de oportunidades para pequenos agricultores e não para fazendeiros.
Mas ele teria as expulsado famílias prometendo incendiar seus barracos e até, chamar a Polícia Militar de Nova Ipixuna. Por conta da pressão, uma destas teria assinado um termo de desistência da terra, a repassando para José Rodrigues. Foi quando Zé Cláudio e Maria, junto à Comissão Pastoral da Terra denunciaram o caso à Delegacia Especializada de Conflitos Agrários.
A partir daí, as ameaças foram diretas. “Ele chegava a dizer nos lugares, nos barzinhos, onde fosse, que meu irmão e minha cunhada eram mortos-vivos. Em 2011 ele conseguiu executar o que prometeu”.
Junto ao Instituto, nas redes sociais, Claudelice mantem campanha para saber o paradeiro de José Rodrigues para que então, “haja justiça completa”, como ela reforça.
Cumprindo a promessa
“É muito triste pensar nisso tudo. Maria por exemplo, estava muito empolgada com um projeto de manejo florestal. Ela não queria perder a vida. A gente sabia do perigo mas não tinha noção que ia ter esse desfecho”.
Claudelice recorda-se de uma reunião no barracão da Associação. “Eu falei que eu dava minha vida pela floresta. Zé retrucou e disse: ‘eu não dou não’. Eu era muito nova. Era uma visão utópica, romântica. Ele disse: ‘eu luto por ela, mas não daria minha vida’. Aquele dia minha ficha caiu”.
E nesse ponto, Zé Cláudio já era ameaçado. “Daí eu disse mas se alguém te matar, nós vamos te vingar. Mas jamais imaginei que eu tivesse que fazer isso. A gente estava tão feliz. Mas estava ficando cada dia mais perigoso. Nunca imaginei que fosse ter que cumprir a promessa”.
Mas a vingança de Claudelice tem outros impulsos.
“Eles cortaram? Nós plantamos. Eles mataram Zé e Maria? A gente ajuda outros. Eu sei que de onde estiverem, eles estão sabendo que estamos fazendo vingança quando mantemos a luta e a memória em pé. Dez anos se passaram mas eles não foram esquecidos. E não serão”.
Despedida

Uma multidão acompanhou funeral e sepultamento (Rodolfo Oliveira/Agência Pará)
O sepultamento aconteceu no dia 26 de maio. A despedida foi emocionante. Representantes de movimentos sociais, vizinhos, familiares e amigos fizeram uma vigília madrugada adentro para homenagear José e Maria.
De manhã, um cortejo com mais de 5 mil pessoas seguiu para o cemitério de Marabá. Houve interdição da BR-222 e da Estrada de Ferro de Carajás.

(Reprodução blog Quaradouro/Ademar Braz)
Depois da morte do casal, o Ministério Público Federal do Pará pediu à Polícia Federal e autoridades de segurança pública do Estado que agissem com rigor nas investigações sobre ameaças e assassinatos cometidos contra defensores do meio ambiente e alvo certo da violência do campo.
A Força Nacional começou a investigar então, ameaças de madeireiros que desmatavam ilegalmente em Nova Ipixuna e que ameaçavam quem se opunha à extração ilegal de madeira. Serrarias também foram fechadas na região.
No pedido da promotoria federal, foi reforçada a informação de que madeireiros estariam oferecendo R$ 80 mil por assassinatos. O MPF pediu também proteção a ativistas ameaçados.
Ruralistas vaiaram extrativistas
A morte que causou comoção mundial foi alvo de deboche de ruralistas.
“Por defender o meio ambiente Zé Cláudio e Maria eram chamados de atraso. E quantas vezes outras pessoas assassinadas por defender seu território são considerados bandidos, não é?”, desabafa Claudelice.
No plenário, no dia da morte do casal, o deputado federal Sarney Filho (PV-MA) ocupou a tribuna para denunciar o assassinato e homenageá-los. Foi vaiado por ruralistas presentes nas galerias da Câmara, à espera da votação do Código Florestal.