O herbívoro peixe-boi-da-amazônia (T. inunguis) é uma das três espécies da atualidade (Foto: Agência Brasil)

 

Tendo muito ainda a se desvendar sobre uma das criaturas mais dóceis e por esse mesmo motivo, mais expostas à ação de caçadores, pesquisadores conseguiram escrever a história evolutiva do gênero do qual descendem três peixes-boi da atualidade: o africano, marinho e o peixe-boi-da-amazônia.

Eles constam na categoria “vulnerável” da lista vermelha de espécies ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). Os resultados da pesquisa que apresenta o primeiro sequenciamento do DNA mitocondrial das três espécies devem auxiliar grupos que trabalham por sua proteção e conservação.

O estudo apoiado pela FAPESP e publicado na revista Scientific Reports, traz detalhes até então desconhecidos. Mesmo com poucos registros fósseis do mamífero aquático, o cruzamento das informações existentes com dados geológicos e genéticos possibilitou escrever a história evolutiva do gênero Trichechus, que engloba as três espécies atuais.

Desse ancestral comum, divergiram cerca de 6,5 milhões de anos atrás – quando um imenso lago na Amazônia, então ligada ao Caribe, se fechou para o mar.

O peixe-boi-africano (Trichechus senegalensis) não é tão próximo geneticamente do peixe-boi-marinho (T. manatus) quanto se pensava. E a adaptação do peixe-boi-da-amazônia (T. inunguis) a esse ambiente complexo deixou pelo menos uma marca em seu código genético.

Amostras de tecido foram obtidas em colaboração com pesquisadores do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, no Amazonas, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), além de instituições da Bélgica e dos Estados Unidos.

A professora do Instituto de Biologia da Unicamp e coordenadora do estudo, Mariana Freitas Nery explica que cerca de 20 milhões de anos atrás, a Amazônia estava conectada com o mar do Caribe pelo hoje extinto lago Pebas. Tanto na área caribenha como na amazônica havia peixes-boi, não os atuais, mas um ancestral comum.

“Há mais ou menos 9 milhões de anos, o nível do mar baixou e o lago Pebas foi se reduzindo e se desconectando do Caribe. Dessa maneira, os peixes-boi da região amazônica ficaram semi-isolados, uma vez que ainda havia alguma entrada do mar nesse lago. Mas, entre 6 e 5 milhões de anos atrás, a Amazônia tornou-se totalmente isolada da região caribenha, as populações foram separadas e começaram a se especializar no ambiente fluvial ou no marinho”.

Evolução

O grupo realizou então o sequenciamento do DNA da mitocôndria, a organela responsável pela produção de energia das células. Ainda que tenha menos genes do que o material genético existente no núcleo da célula, o DNA mitocondrial – herdado somente da mãe – pode ser sequenciado com mais facilidade em laboratório. Além disso, possui informações cruciais sobre a evolução de um ser vivo. Os dados são os mais completos já obtidos dos peixes-boi.

“Do ponto de vista da história evolutiva, não acredito que os resultados devem mudar muito em relação ao que já encontramos com o genoma mitocondrial. Mas buscamos novas informações que ajudem a entender melhor esses animais. Por enquanto, escrevemos a história mais completa possível sobre eles”, encerra Nery.

Outra autora do trabalho, que o tem como parte de seu doutorado no IB-Unicamp, Érica Martinha Silva de Souza, ressalta que agora tem-se uma hipótese bem fundamentada a respeito da distribuição desses animais.

“Pudemos adicionar informações que não existiam nos trabalhos realizados até então, principalmente da espécie africana. Nas filogenias [histórias evolutivas do grupo] já feitas só havia informação das espécies que ocorrem nas Américas, ainda assim de apenas alguns genes. Era sempre muito difícil ter acesso ao material do T. senegalensis, o que foi possível graças a essa colaboração internacional”, diz.

Da América do Sul para a África

Érica aponta ainda que é impressionante como a história da bacia amazônica influenciou a distribuição de várias espécies de peixes, aves, répteis e mamíferos. “E aqui vemos claramente a influência da formação da bacia amazônica na distribuição dos peixes-boi”.

Em janeiro deste ano, enquanto as autoras finalizavam o artigo, foi publicada a datação dos primeiros fósseis de um quarto membro do grupo, o peixe-boi-do-oeste-da-amazônia (Trichechus hesperamazonicus), já extinto.

Encontrados no atual Estado de Rondônia, os fragmentos da mandíbula e de parte do crânio tiveram idade estimada em 45 mil anos. Não existem peixes-boi atualmente na região.

Segundo as pesquisadoras da Unicamp, encontrar um fóssil na África seria crucial para estabelecer quando o peixe-boi chegou ao continente. Como esse registro ainda não foi obtido, não é possível saber quando ocorreu a provável migração, via correntes marinhas, que originou o peixe-boi-africano.

Estudos realizados por outros grupos comparando a morfologia das espécies e analisando alguns genes haviam concluído que a espécie que ocorre na África – mais precisamente na costa que vai do Senegal ao norte de Angola e em rios que desaguam nela – seria mais próxima do peixe-boi-marinho (T. manatus), presente numa área que vai da costa sudeste dos Estados Unidos, passando pelo Caribe e chegando ao nordeste brasileiro.

As análises do DNA mitocondrial mostraram, na verdade, que o T. manatus está mais relacionado geneticamente com o T. inunguis do que com a espécie africana. Provavelmente, as relações entre T. senegalensis e T. manatus verificadas nos outros trabalhos se devem às características dos hábitats em que a espécie costeira americana e a africana vivem.

Ambas as espécies se alimentam de plantas aquáticas que crescem no fundo, o que moldou o formato de suas mandíbulas e dentes; além disso, transitam entre a água salgada e salobra, respectivamente do mar e de porções de rio parcialmente invadidos pelo oceano. A espécie amazônica vive apenas em água doce. Essa capacidade é sinalizada por uma mutação no gene ND4, relacionado à cadeia respiratória da célula, e exclusiva dessa espécie.

A mesma alteração está presente em golfinhos de água doce, mamíferos de vida subterrânea e alpacas de altas altitudes. Outros estudos mostram ainda que a mutação pode estar relacionada a mudanças de temperatura do ambiente e adaptações necessárias para equilibrar uma dieta pouco energética em um corpo de grandes dimensões – problemas que o peixe-boi-da-amazônia tem de lidar frequentemente.

Mariana Freitas Nery destaca que a pesquisa identificou o que é chamado pelos cientistas de “uma seleção positiva nesse gene específico da cadeia respiratória da célula. A água doce é um ambiente complexo e dinâmico, com variações de temperatura, quantidade de sedimentos e acidez, especialmente na bacia amazônica, então era até esperado que essa espécie apresentasse mais ‘pegadas’ moleculares de sua adaptação a esse meio”, afirma.

(Com Fapesb)