Foto: Lunaé Parracho/Repórter Brasil

 

Advogado com trajetória reconhecida pela defesa dos direitos humanos no Sul do Pará, região minada por conflitos no campo, José Vargas Júnior está preso há mais de seis meses. Seu julgamento está marcado para 12 de julho.

O advogado foi acusado injustamente por envolvimento na morte do então candidato a vereador de Redenção (PA) e presidente de uma associação de pessoas com epilepsia, Cícero José Rodrigues, desaparecido em 20 de outubro de 2020.

A ossada dele foi encontrada em 19 de março de 2021, numa área de mata às margens da rodovia PA-287. Havia uma marca de bala no lado de trás do crânio e um projétil foi encontrado no local, junto a materiais de campanha. Antes de ser assassinado, Cícero, que era defensor de direitos na área da saúde, havia feito denúncias ao Ministério Público Federal sobre suposto esquema de desvio de verbas públicas.

Vargas afirma que a acusação por esse crime é uma estratégia para tirar o foco de um dos casos em que atua. Ele é advogado de defesa dos sobreviventes da chacina de Pau D´Arco e acredita estar sendo vítima de uma armação entre a Polícia Civil e o Ministério Público.

“Fui preso para prejudicar a investigação dos mandantes da chacina de Pau D’Arco”, afirmou em entrevista à agência Repórter Brasil. Esse foi o massacre mais brutal da história de conflitos no campo no Brasil, desde Eldorado de Carajás. Em Pau D´Arco, dez trabalhadores rurais foram mortos por policiais.

Além de Pau D’arco, Vargas atua em casos emblemáticos, como na defesa de trabalhadores contra a multinacional JBS e de indígenas Kayapó contra empresas mineradoras. Reconhecido por sua atuação, recebeu o prêmio João Canuto em 2017, concedido pelo Movimento Humanos Direitos (MHuD), e a medalha Paulo Frota 2018, outorgada pela Assembleia Legislativa do Pará.

Mesmo com todas as condições previstas na Constituição Federal e na legislação processual penal para responder à acusação em liberdade, ele segue preso. Em carta de apoio ao advogado, que pedia sua soltura, entidades ressaltaram que no inquérito não havia nenhuma prova de participação direta no crime, tampouco registro de ameaças a testemunha, e que ele não oferecia risco às investigações e não respondia a outro processo, além de ter residência fixa e profissão reconhecida.

“A Prisão Preventiva é medida extrema e só deve ser utilizada quando as provas são consistentes e as condições do acusado são desfavoráveis, o que não é o caso”. Mas a Justiça não respondeu aos apelos.

“Vargas foi preso em casa diante de sua esposa e de suas duas filhas. Seu computador e seu telefone celular foram apreendidos. A prisão afeta não somente a ele e sua família, mas também a centenas de pessoas dos casos em que ele atua – trabalhadores sem terra, indígenas, camponeses: a gente pobre desta terra, e de quem Vargas sempre foi um aliado”, diz outro trecho da carta de apoio.

Desde que foi detido, em 1º de janeiro de 2021, tem recebido apoio de diversas organizações nacionais e internacionais, que estão acompanhando o caso, como a Organização das Nações Unidas (ONU), Frontline Defenders, Global Witness, Anistia Internacional, Comissão Pastoral da Terra, Terra de Direitos e Justiça Global, entre outras.

Ameaçado pela sua posição intransigente na busca por justiça e reparação para os sobreviventes, Vargas chegou a ser incluído no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos por conta de ameaças de morte.

Vítima de perseguição

Durante os 21 dias que ficou preso, chegou a dizer que “carregava a culpa de ter feito uma piada infeliz”. Porém, começou a receber recados na prisão que trouxeram à luz indícios de que estava sendo alvo de perseguição e criminalização.

“Doutor, como você dá um vacilo desse? A polícia toda quer te pegar”, disse a ele um agente penitenciário, como contou à Repórter Brasil.

Sem acesso à íntegra da conversa que baseava a acusação policial, Vargas demorou a perceber que de fato, se tratava de uma perseguição. Os recados que recebeu de agentes de segurança foram fundamentais, pois diziam que estava em curso uma projeto policial para impedir que seu trabalho levasse à descoberta dos mandantes da chacina de Pau D’Arco.

O crime aconteceu em 24 de maio de 2017 e mesmo com todos os indícios e relatos de testemunhas sobre a execução de 10 trabalhadores sem-terra que ocupavam área na Fazenda Santa Lúcia, até hoje os 16 réus – policiais militares e civis – não foram condenados e seguem em seus postos, atuando livremente em Redenção.

Para tentar dar visibilidade ao caso e cobrar que a inocência de Vargas seja reconhecida, representantes de movimentos sociais e entidades de defesa dos direitos humanos se mobilizam diante da proximidade do julgamento.

A Ordem dos Advogados do Brasil, via Subseção de Redenção, atua na defesa do advogado partindo do argumento que a polícia ocultou provas que o inocentavam. As provas usadas contra Vargas foram exclusivamente áudios e mensagens de Whatsapp, nos quais o advogado comentava com o advogado Marcelo Borges sobre o desaparecimento do ex-vereador.

Ocultação de provas

A defesa de Vargas só teve acesso às provas 113 dias depois de sua prisão. Mesmo tendo disponíveis 567 mensagens, a polícia só levou em consideração 12 delas – em que o advogado usava de ironia para comentar o sumiço de Cícero -, como se filtrasse o conteúdo.

Com a transcrição completa em mãos, a defesa do advogado se deu conta que a polícia, ao analisar o diálogo que o teria incriminado considerou apenas o equivalente a 2% da conversa para acusa-lo do envolvimento no desaparecimento de Cícero.

Ao Repórter Brasil o presidente da subseção da OAB, Marcelo Mendanha, disse que “[houve] uma clara ocultação de provas por parte das autoridades persecutórias durante a fase investigativa”. Ele se refere ao fato de a Polícia Civil e o Ministério Público terem ignorado o restante da conversa, em que havia provas para inocentar Vargas.

Dentre os trechos desconsiderados, haviam por exemplo, conversas em que ele se mostrava preocupado com o desaparecimento de Cícero, por conta de denúncias que o mesmo havia feito.

Segundo a defesa, os diálogos mais intensos sobre o sumiço de Cícero — que provariam a inocência dos dois advogados — aconteceram antes de 26 de outubro, data que a polícia e Ministério Público usaram como ponto de partida para a denúncia.

O diálogo também revela a preocupação de Vargas com as denúncias que Cícero fizera ao MPF sobre suposta corrupção na prefeitura de Redenção em contratos de compras de cabines de desinfecção de covid na cidade, com uso de verbas da União.

“Acho que vai ter que falar para a PC [Polícia Civil] que ele estava atrás daquela empresa”, escreve Vargas para Borges. Vargas ainda manda as seguintes mensagens: “Carai maluco” e “Apagaram o Ciço”

Vargas então avisa Borges que iria informar a coordenadora do núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Pará, Juliana Oliveira, sobre o sumiço de Cícero. Logo depois, diz que ela irá acionar a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Pará. De fato, o deputado estadual Carlos Bordalo (PT), integrante da comissão de direitos humanos, pediu celeridade nas investigações do desaparecimento de Cícero.

“O que a polícia tem contra ele é extremamente frágil, são piadas que ele enviou por áudio a um amigo”, diz o seu advogado Marcelo Mendanha, em entrevista à agência Repórter Brasil.

A criminalização de Vargas está associada a um contexto mais amplo de violência e perseguição contra os movimentos sociais da região.

Poucos dias depois de sua prisão, foi assassinado Fernando, sobrevivente do massacre de Pau d’Arco, e uma das mais importantes testemunhas da chacina policial, que guardava na memória a maior riqueza de detalhes sobre o caso. Fernando era defendido judicialmente por Vargas. A morte de Fernando, assim como o massacre, permanece impune. Vargas permanece preso.

 

Principal testemunha viva do caso, Fernando foi executado em 26 de janeiro de 2021   (Lunaé Parracho/Repórter Brasil)

Pau D´Arco – Entenda

Segundo consta em registro da Comissão Pastoral da Terra, no dia 24 de maio de 2017, dez trabalhadores rurais sem terra (nove homens e uma mulher) foram mortos em uma ação da Polícia Militar (PM) e da Polícia Civil do estado do Pará, supostamente organizada para cumprir mandados de prisão contra ocupantes da Fazenda Santa Lúcia / Acampamento Nova Vida.

A operação foi conduzida pela Delegacia de Conflitos Agrários (DECA), com apoio de contingente policial de Redenção, Conceição do Araguaia e Xinguara. Ao todo 15 policiais (13 militares e 2 civis) chegaram a ser presos preventivamente em setembro de 2017, mas foram soltos por decisão no Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJE-PA) no dia 18 de dezembro de 2017.

Já no dia 16 de janeiro de 2018, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, negou liminar de habeas corpus requerida pela defesa dos policiais civis e militares. Cármen afirmou, em sua decisão, que “a decisão da presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministra Laurita Vaz, que restabeleceu a prisão [em dezembro de 2017] está de acordo com a jurisprudência do STF no sentido de que a periculosidade do agente, evidenciada pelo risco de reiteração delitiva, é motivo idôneo para a custódia cautelar”.

Em um trágico desfecho, o sobrevivente do massacre de Pau D’Arco e principal testemunha viva do caso, Fernando Araújo dos Santos foi executado na noite de 26 de janeiro de 2021 com um tiro na nuca, em seu lote, no Acampamento Jane Júlia, em Pau D’Arco. Fernando viu seu namorado morrer no massacre. Chegou a entrar no programa de proteção a testemunhas, mas decidiu encarar o risco e voltar à Santa Lúcia. “A gente já pagou por essa terra. Com o nosso sangue”, disse ele.

Semanas antes de morrer, no dia 8 de janeiro, em entrevista à Repórter Brasil Fernando disse: “eu sinto que tá vindo coisa pesada pra nós aqui na [fazenda] Santa Lúcia”.  Assim ele encerrava entrevista sobre recados e ameaças que recebeu dos policiais responsáveis pela Chacina de Pau D’Arco.

Os policiais, hoje réus por homicídio, aguardam julgamento em liberdade e na ativa. Andam fardados no mesmo local onde vivem – ou viviam – as testemunhas. A liberdade foi concedida pelo ministro Ribeiro Dantas, do Superior Tribunal de Justiça, em junho de 2018.

(Com Repórter Brasil e CPT)