A população estimada em cerca de 85 mil indígenas Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, traz consigo cicatrizes profundas – inclusive físicas – da tentativa de extermínio a que seu povo é submetido há décadas.
Muitos não conseguem aguentar a situação de miséria, perseguição e despejos motivados por pedidos de reintegração de posse que beneficiam grandes empresários do agronegócio do Estado.
Além da violência constante, as famílias têm que lidar com o suicídio, boa parte deles, de jovens. Quadros de morte por desnutrição e contaminação por agrotóxico também fazem parte dessa triste realidade.
O estado concentrou 39,4% dos assassinatos de indígenas registrados no Brasil entre 2003 e 2019 (539 de 1.367). O Mato Grosso do Sul, onde foram registrados 894 suicídios de indígenas entre 2000 e 2019, responde por quase dois terços (63,7%) do total de suicídios registrados no Brasil (1.404) neste período, segundo levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), com base em dados do Conselho Indigenista Missionário.
“Os dados reforçam que, assim como no resto do país, no estado também não faz sentido a alegação ruralista de que há ‘muita terra pra pouco índio’ e que as demarcações comprometem o estoque de áreas disponíveis e a produção agropecuária”, diz trecho do texto de apresentação da pesquisa.
Segundo o Isa, “o detalhamento das informações apresentadas reforça a assimetria entre uma população indígena confinada em territórios minúsculos e uma extensão imensa disponível ao latifúndio e à produção de commodities para exportação (soja, cana, milho, gado e celulose)”.
Com análise de dados georreferenciados, o estudo aponta que áreas privadas ocupam 92% do território do Mato Grosso do Sul, enquanto as Terras Indígenas (TIs) apenas 2,5%. As grandes fazendas, com mais de mil hectares, perfazem 83% da extensão total dos imóveis rurais, enquanto as pequenas propriedades representam apenas 4%. Um hectare corresponde mais ou menos a um campo de futebol.
Das 32 terras dos Guarani Kaiowá e Ñhandeva no estado, as comunidades estão atualmente na posse efetiva de apenas 29% da área total delimitada, o que significa uma posse de apenas 1,1 ha por pessoa.
Com 1,1 ha por pessoa indígena, a reprodução da vida fica impossibilitada. De acordo com a antropóloga Lucia Helena Rangel, os jovens não conseguem mais virar adultos segundo a tradição, já que a parte final do ritual de iniciação de cada jovem consiste em fazer um roçado para oferecer à mulher com quem vai se casar. Na impossibilidade de plantar uma roça para a futura família, os jovens procuram trabalho no corte de cana ou nas fazendas.
Ainda segundo o estudo, diante da falta de perspectiva de futuro, inúmeros jovens cometem suicídio, a maioria por enforcamento ou envenenamento.
“Não é por acaso que a população indígena apresenta uma taxa de mortalidade por suicídio quase três vezes maior (15,2 por mil habitantes) que a média nacional (5,5). Sendo que quase metade dos óbitos (47,7%) registrados na população indígena entre 2010 e 2017 se concentra na faixa etária de 10 a 19 anos, justamente aquela que marca a passagem para a vida adulta”.
No entanto, os dados se referem apenas a casos divulgados e registrados. É provável que exista uma subnotificação de ocorrências tanto por parte dos órgãos de saúde, quanto pelas próprias famílias, por razões culturais.
“Nem um centímetro a mais para demarcação”
O aumento das ações de reintegração de posse, despejos ilegais e ataques, se multiplicam, estimulados por declarações de Jair Bolsonaro e são comemorados por membros de sindicatos rurais, políticos e por fazendeiros que são contrários às demarcações de territórios indígenas. E assim, o povo Guarani Kaiowá fica exposto a uma série de violações generalizadas de direitos e uma escalada de violência contra lideranças e comunidades, perpetradas pelos atores do agronegócio e suas milícias armadas, e reconhecidas por entidades de direitos humanos e pelas Nações Unidas.
A aprovação do PL 490, que prevê alterações nas regras de demarcação de terras indígenas e decisão favorável ao Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal (STF), aceleraria o processo de genocídio dessa população. Foram muitas as liminares concedidas em favor de invasores e para a expulsão de indígenas de suas terras, como está acontecendo sistematicamente com o povo Guarani Kaiowá (MS).
Foi em Dourados (MS), uma das cidades com situação mais crítica que o então candidato à presidência da República, disse que se vencesse a eleição, não haveria demarcações. “Se eu assumir como presidente da República, não haverá um centímetro a mais para demarcação”, disse a repórteres à ocasião.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) destaca que os ataques contra os indígenas se intensificaram a partir de outubro de 2018. Na noite em que foi confirmada a vitória de Bolsonaro. No dia 28 daquele mês, 15 Guarani Kaiowá foram feridos por disparos feitos com balas de borracha e de gude. Desde então, as ações violentas já deixaram inúmeros feridos por projéteis de borracha e armas de fogo, muitos com gravidade.
Apagamento cultural
Os altos índices de violência contra indígenas dentro e no entorno da reserva são parte de um contexto de apagamento cultural, tirando-lhes o que é mais raro, as tekohas. Em Guarani, quer dizer “o lugar onde somos o que somos”, terra sagrada.
No ataque mais recente, a casa de reza da aldeia Tekoha Guapo´y foi alvo de incêndio criminoso. O segundo em pouco mais de um mês. Em 19 de agosto foi queimada a casa de reza de Cassiano Romero, 92 anos, da aldeia Rancho Jacaré, em Laguna Carapã.
A intolerância religiosa tem motivado diversos episódios de violência contra o povo Guarani Kaiowá. Segundo os indígenas, eles estão relacionados com o reflexo do crescimento do número de igrejas evangélicas dentro da comunidade. O antropólogo indígena Tonico Benites, também Guarani Kaiowá, em entrevista ao De Olho nos Ruralistas relaciona diretamente o avanço de algumas religiões evangélicas, em especial aquelas mais intolerantes, com o cerco do agronegócio contra os povos originários.
“Ao atacar o modo de vida tradicional, eles enfraquecem também a cultura e a identidade”, afirma Benites. O objetivo é um só: deixar comunidades cada vez mais vulneráveis aos ataques ruralistas e ao avanço sobre seus territórios.
Em janeiro deste ano, a Kunhangue Aty Guasu, Grande Assembleia das Mulheres Kaiowá e Guarani, escreveu um documento para o MPF de Ponta Porã e de Dourados, para a DPE/MS e a DPU. Nele, as mulheres indígenas denunciam os ataques às ñandesys (rezadeiras).
Segundo o documento, “perseguições, torturas, espancamentos, dentre tantas violências contra as anciãs praticadas por homens vestidos de ‘crentes’ e outros líderes ligados à capitania das comunidades Kaiowá e Guarani. Esses homens, em sua maioria, fazem parte da doutrina da igreja pentecostal Deus é Amor e pregam discursos coloniais de dominação do corpo da mulher, silenciando e violentando em nome da igreja”.
Em setembro, na Tekoha Avaété, ao menos três casas foram queimadas por seguranças privados de um fazendeiro. Em um destes crimes, um deles confirmou a autoria, alegando que estava defendendo sua terra e que os indígenas seriam invasores. O tekoha Avae’te é uma das retomadas que ficam próximas aos atuais limites da reserva de Dourados (MS), área reivindicada pelos indígenas como parte de seu território tradicional.
“Botei fogo sim, porque o barraco estava dentro da área que sou arrendatário”, disse o produtor rural Giovanni Jolando ao jornal local, MidiaMax. Ele alegou que indígenas que estavam acampados na região teriam destruído parte da sua plantação de milho. Um indígena que não quis se identificar, temendo represália disse à reportagem: “nós é que estamos sendo atacados. Essa área pertence ao nosso povo e vamos insistir até conseguir comprovar que somos os legítimos donos”.
Indígenas relataram ao Cimi que fazendeiros continuam utilizando outra ferramenta extremamente violenta, o “caveirão”, um trator adaptado, com chapas de metal, utilizado para atacar os indígenas e derrubar os barracos das retomadas.
Em outubro de 2020 tornou-se público um dos casos mais truculentos, em que uma idosa de 75 anos teve as pernas esmagadas pelo veículo blindado e crianças foram perseguidas.
São tantos artifícios utilizados para expulsá-los que não há como não admirá-los por sua força em resgatar suas terras. Muitos também já perderam a visão ao serem atingidos por balas de borracha. Outros, surdos, caso dos indígenas agredidos por um grupo armado da Fazenda Querência, em Aral Moreira (MS) em 16 de março deste ano. Segundo relatos das vítimas ao MPF de Ponta Porã, eles foram torturados, inclusive, com tiros próximos aos ouvidos. Eles conseguiram escapar, ensanguentados.
Mas muitos outros perderam a vida, um dos casos mais emblemáticos é do cacique Marcos Veron, que aos 72 anos morreu em decorrência de um traumatismo craniano em 2003, causado por espancamento. Entre 2001 e 2018 foram assassinados 14 líderes indígenas em represália às tentativas de retomar pacificamente terras já reconhecidas pelo Estado. A família de Veron também foi vítima da truculência deste ataque. Um dos seus filhos quase foi queimado vivo. O mesmo ataque dizimou homens, mulheres e crianças do território.
Filha do cacique, Valdelice Veron cultiva o legado do pai na Terra Indígena Taquara, em Juti (MS). Além dele, ela perdeu outros três irmãos, todos jovens lideranças da luta pelo direito à terra. Uma de suas irmãs perdeu dois filhos de fome quando no processo de despejo. “Nós seguimos demarcando as terras indígenas com luto e sangue”, disse certa vez a repórteres do Jornalistas Livres.
Dos ataques mais recentes ao povo Guarani Kaiowá, em julho deste ano morreram mãe e filha, de 11 anos, atingidas por disparos de um atentado a tiros na aldeia Taquaperi, em Coronel Sapucaia (MS), na fronteira com o Paraguai.
São tantos os casos que fica difícil apontá-los, até mesmo por casos não notificados. Somam à violência, vários registros de abuso e estupro de mulheres indígenas.
Denúncia ao Tribunal de Haia: genocídio e ecocídio
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) tem feito constantes denúncias à comunidade internacional, acionando o Tribunal Penal Internacional, o Tribunal de Haia. Ao TPI argumenta que estão em curso no Brasil, “atos que se configuram como crimes contra a humanidade, genocídio e ecocídio”.
Dada a incapacidade do atual sistema de justiça no Brasil de investigar, processar e julgar essas condutas é que a Apib aciona o tribunal internacional. No relatório de 148 páginas, os Guarani Kaiowá parecem como um dos povos mais afetados, junto aos Munduruku, Yanomami, Guarani-Mbya, Kaigang, Tikuna, Guajajara e Terena.
Segundo mapa de Conflitos elaborado pela Fiocruz, os Guarani Kaiowá iniciaram, na década de 1980, uma marcha pela retomada das terras das quais foram expulsos no Mato Grosso do Sul, durante os anos 1950, no governo de Getúlio Vargas. Anciãos garantem que a perda de seu território começou na década de 20 do século passado. A partir dali, as terras dos Guarani Kaiowá começaram a ser tomadas sistematicamente, sempre com o uso da intimidação ou da violência.
Além de reivindicar as áreas retomadas no entorno da reserva como parte de seu território de ocupação tradicional, os indígenas denunciam a apropriação privada de partes da reserva, que passou por sucessivas reduções desde sua criação, no início do século XX.
A existência do grupo veio à tona na mídia em 2012, quando uma declaração formal dos moradores do acampamento de Pyelito Kue, no Mato Grosso do Sul, proclamou resistência até a morte frente a uma ameaça violenta feita por fazendeiros, num conflito por terras.
Devido à desigualdade de forças em jogo, a declaração foi interpretada publicamente como anúncio de um suicídio coletivo, despertando ampla comoção nas redes sociais. Foi quando, no Facebook, internautas passaram a colocar “Kaiowá” nos seus sobrenomes. A partir da pressão pública e midiática, o Ministério dos Direitos Humanos e o Ministério Público Federal agiram em seu favor.
O racismo também corrói a população Guarani Kaiowá. Em abril deste ano, um grupo de hackers invadiu a apresentação virtual de uma pesquisa de pós-doutorado feita pelo professor Alvaro de Azevedo Gonzaga, doutor e livre-docente em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ele estava apresentando a pesquisa “Decolonialismo Indígena”, pela Universidade Federal da Grande Dourados, do Mato Grosso do Sul, quando foi surpreendido pela invasão.
Os hackers postaram mensagens como “Bolsonaro 2022” e uma série de xingamentos, como “bandidos comunistas”, e outras mais ameaçadoras, como “vou te matar”. Com o intuito de prejudicar a apresentação, os invasores ainda colocaram para tocar o áudio conhecido como “gemidão do zap”.
Territórios na mira
No levantamento titulado “É muita terra pra pouco índio? Ou muita terra na mão de poucos? Conflitos fundiários no Mato Grosso do Sul”, lançado pelo Instituto Socioambiental (ISA), os pesquisadores Anderson de Souza Santos, Luiz Henrique Eloy Amado e Dan Pasca apontam que cortar a relação dos indígenas com a terra foi visto como elemento chave para transformá-los em cidadãos, em “trabalhadores nacionais”, pobres e sem terra, aos quais só restaria vender a sua força de trabalho.
“Seguindo esta lógica perversa, os territórios dos povos indígenas, quilombolas e de outras comunidades tradicionais continuam na mira de atores econômicos interessados na apropriação e incorporação destas terras e de seus recursos naturais e minerais nos circuitos econômicos nacionais e internacionais sob a forma de commodities. (…) Na última década, a ofensiva contra os direitos destes povos se intensificou, incentivada pela paralisação dos processos de demarcação e, ultimamente, pelo discurso abertamente anti-indígena e racista do próprio governo”, diz trecho do documento que visa analisar as diferentes facetas dos conflitos fundiários que envolvem povos indígenas, populações tradicionais e fazendeiros no Brasil e no Mato Grosso do Sul.
O estudo aponta que o Brasil é um dos países com uma das mais desiguais distribuições de terra do mundo: 1% dos donos da terra concentra quase metade (47,6%) da área total, mas emprega apenas 6,7% do pessoal empregado no campo. Assim, os 47 mil maiores proprietários acumulam 150 milhões de ha, 27% a mais do que a totalidade das terras indígenas, resultando numa área média de 3.152 ha por proprietário.
“Se cada um dos 800 mil indígenas que vivem hoje nas terras indígenas do Brasil possuísse 3.152 ha, as terras indígenas somariam 2,5 bilhões de ha ou 03 Brasis”.
Confira os principais resultados:
- O Mato Grosso do Sul é o estado com a segunda maior população indígena (cerca de 85 mil) e a segunda pior distribuição de terras, com um índice Gini de 0,84. Assim, as grandes propriedades (> 1.000 ha) ocupam 83% da área, enquanto que as pequenas propriedades (<50 ha) ocupam apenas 4% da área.
- Os maiores 10% dos imóveis rurais do estado (8.674 imóveis) acumulam mais de 23 milhões de ha (75% da área total dos imóveis rurais), com uma área média de 2.680 ha por proprietário.
- Se cada um dos 85 mil indígenas do estado possuísse 2.680 ha, as terras indígenas ocupariam 228 milhões de ha, uma área 6,4 vezes maior que o estado.
- Com uma área total de 904.586 ha, as 48 terras indígenas delimitadas atualmente representam apenas 2,5% da extensão territorial do Mato Grosso do Sul, que soma 35.714.553 ha. Além destas, 15 terras se encontram em estudo, como mostra a tabela e o mapa seguintes.
- Além das TIs em algum estágio de reconhecimento, o levantamento identificou um grande número de ocupações precárias: 22 acampamentos Guarani e Kaiowá (791 famílias em 9 municípios), 30 retomadas Terena (6 municípios) e uma retomada Kinikinau, como demonstrado nas tabelas a seguir. Trata-se de comunidades indígenas, que diante da inoperância do Estado, reocupam seus territórios originários de forma autônoma, encontrando-se em situação de extrema vulnerabilidade econômica, social e psicológica.
- Os povos indígenas do estado representam 10,6% da população que vive nas TIs do Brasil, mas ocupam apenas 0,7% das terras indígenas no país.
- Das 32 terras dos Guarani Kaiowá e Ñhandeva no estado, as comunidades estão atualmente na posse efetiva de apenas 29% da área total delimitada, o que significa uma posse de apenas 1,1 ha por pessoa.
- 77% dos conflitos por terra registrados nos últimos 15 anos (2005-2019) no Mato Grosso do Sul são relativos ao reconhecimento de terras indígenas.
- Baseado na análise dos dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan/MS), o atlas “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil” (Bombardi, 2017) revela que a população indígena do Mato Grosso do Sul é a terceira do país mais contaminada por agrotóxicos, com seis registros oficiais de intoxicação por agrotóxicos para cada 10 mil indígenas, entre 2007 e 2014. Contudo, considerando que a subnotificação é importante, a intoxicação poderia atingir até 3% da população indígena no estado. “A intoxicação por agrotóxicos está ligada à expansão das lavouras de soja, milho e cana-de-açúcar, que ficam no entorno ou sobrepostas às terras indígenas. Nascentes de rios e córregos, que abastecem as aldeias, são contaminados pela pulverização de agrotóxicos. Há casos em que pilotos de aeronaves fazem voos rasantes e borrifam, de forma criminosa, o veneno nas habitações e roças dos indígenas, conforme indicam as investigações feitas pelo MPF-MS”, indica Larissa Bombardi, do Departamento de Geografia da USP, na pesquisa “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia”.
Ocupações e retomadas
No estudo publicado pelo Isa, pesquisadores declaram que as “as ocupações e retomadas são reflexo das intensas lutas pela terra, que aconteceram no Mato Grosso do Sul, principalmente no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Grande parte das ocupações realizadas nesta época concentra‐se na região Centro‐Sul do estado”.
As ocupações realizadas pelos movimentos indígenas estão localizadas em áreas reivindicadas ou inclusive já delimitadas e demarcadas como terras indígenas, mas onde os indígenas estão sendo impedidos de tomarem posse efetiva do território pelos latifundiários e atores do agronegócio.
O relatório indica que terras indígenas homologadas, também estão sendo questionadas por via judicial, como por exemplo a TI Limão Verde, TI Ñande Ru Marangatu e TI Arroio Korá. Isto evidencia a pressão dos atores econômicos do estado, não somente para barrar os processos de regularização em curso, mas também para impedir a posse dos indígenas das terras já delimitadas. Esta estratégia fica patente no caso das 32 terras dos Guarani, como mostra a tabela seguinte:
Do total de 242.322 hectares reconhecidos oficialmente pelo Estado brasileiro como territórios tradicionais, os Guarani Kaiowá e Ñhandeva estão atualmente na posse efetiva de apenas 70.370 ha, 29% da área delimitada. O que significa que, com uma população estimada em 63,5 mil pessoas em 2021, as comunidades Guarani Kaiowá e Ñhandeva possuem de fato apenas 1,1 ha por pessoa.
Lembrando que os maiores 10% dos imóveis rurais do estado (8.674 imóveis) acumulam mais de 23 milhões de ha, o que resulta numa área média de 2.680 ha por proprietário. Se cada um dos 63,5 mil Guarani do estado possuísse 2.680 ha, as terras indígenas dos Guarani ocupariam 170 milhões de hectares, uma área equivalente a 4,8 vezes o tamanho do Mato Grosso do Sul. A realidade hoje é outra. Os Guarani Kaiowá e Ñhandeva seguem vivendo em pequenas porções de terra, pulverizadas numa faixa de cerca de 150 km ao longo da fronteira com o Paraguai, em diversas modalidades de assentamento. Como sistematizado pelo pesquisador Levi Marques Pereira:
- Reservas demarcadas pelo SPI entre 1915 e 1928, com o objetivo de assimilar e transformar os indígenas em trabalhadores nacionais;
- Terras indígenas regularizadas e em posse dos indígenas, algumas ainda com pendências judiciais;
- Terras indígenas com processos administrativos inconclusos, com ações judiciais, conflitos e com posse parcial dos indígenas;
- Ocupações indígenas que aguardam instauração de procedimentos administrativos; Acampamentos indígenas em margens de rodovias à espera de regularização territorial;
- Famílias indígenas vivendo no espaço urbano, frequentemente não reconhecidas como indígenas pelos órgãos indigenistas e sem acesso aos serviços básicos.
A distribuição pulverizada dos assentamentos indígenas foi registrada pelo IBGE, em 2019, numa preparação ao Censo Demográfico de 2020, adiado pelo Governo Federal para 2022: são 181 localidades, como demostra a tabela a seguir:
Como conclusão do estudo, os pesquisadores declaram ser escandaloso o descaso do governo federal em relação aos direitos indígenas no Mato Grosso do Sul. “Apesar de um esforço da FUNAI, em 2013, de identificar uma série de terras indígenas no estado, faltou uma ação mais coerente do ministério da Justiça para resolver os conflitos fundiários”, apontam.
Eles ressaltam também o boicote da bancada ruralista no Congresso, em solucionar conflitos. “Propostas como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 132/2015, que prevê indenização a proprietários com títulos legítimos incidentes sobre terras homologadas depois de 05/10/2013, foram sistematicamente boicotadas pela bancada ruralista no Congresso. Assim, mesmo após sua aprovação pelo Senado, a PEC 132/2015 está parada até hoje na Câmara dos Deputados”, alertam.
A cada dia, os governos se mostram cada vez menos sensíveis aos direitos dos povos indígenas e muito mais obedientes às demandas dos ruralistas.
Acesse o estudo completo, clicando aqui.