Em 15 anos a área plantada com soja no Pampa cresceu 188,5% (Foto: Fernando Dias/ Secretaria da Agricultura do RS)

 

Em entrevista ao Sul21, o professor do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Valério Pillar chama a atenção para o pampa, bioma que tem sofrido a maior remoção de vegetação nativa dentre todos do Brasil.

Ele faz críticas à atuação da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema), que em sua visão, tem falhado na fiscalização do cumprimento da Lei 12.651/2012, conhecida como Lei de Proteção da Vegetação Nativa e que estabelece que 20% de cada propriedade deve ser preservada como “reserva legal”. Em agosto, o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá) encaminhou ao Ministério Público Estadual (MPE) denúncia de omissão da Sema na proteção dos campos nativos do bioma Pampa.

“Se a Secretaria se mexesse para aplicar a lei, essas propriedades deveriam se regularizar e atender aquilo que a lei obriga, que é ou restaurar a reserva legal da propriedade ou compensá-la em outra propriedade”, explicou o professor.

Segundo a reportagem, a área total mapeada no Pampa pelo IBGE, em 2019, foi de 19,3 milhões de hectares. Deste total, os remanescentes de vegetação nativa campestre ocupavam, em 2018, 6,5 milhões de hectares, representando 33,6% do território do bioma.

A agricultura já é o tipo de uso do solo predominante no Pampa, ocupando 38,3% do seu território. As florestas nativas cobrem 13,2% do bioma e a silvicultura 2,4%, sobretudo com eucalipto e pinus, enquanto que os corpos d’água representam 9,6%. A soja tem sido o principal cultivo a ocupar as áreas originalmente constituídas de vegetação nativa campestre. Entre os anos 2000 e 2015, a área plantada com soja no Pampa cresceu 188,5%.

Segundo o professor, anualmente, o pampa perde cerca de 125 mil hectares de campos nativos transformados em lavoura ou silvicultura. Até mesmo a pecuária tem perdido espaço.

“A economia, dizem, se beneficia, dependendo de como se mede esse ganho econômico, mas se perde também nos serviços ecossistêmicos, que são os benefícios que a natureza oferece e que vão além da produção de alimentos. Então se produz mais grãos, mas se diminui a produção pecuária e de lã. Se produz mais grãos, mas se aumenta a perda de solo por erosão, esse solo acaba nos cursos d’água, assoreando e contaminando os cursos d’água, não só pelos sedimentos, mas também pelos adubos e agrotóxicos, e isso acaba afetando a vida aquática. Então nós perdemos biodiversidade aquática, perdemos biodiversidade que talvez nunca venhamos a conhecer”, explica Pillar.

Segundo o professor, a negligência em relação à conservação dos campos nativos no Sul do Brasil vem de muito tempo.

“Ela tem origem numa visão generalizada na sociedade de que áreas onde não há floresta seriam áreas necessariamente degradadas, porque ali deveria haver uma floresta e não há. Essa visão se criou até na educação ambiental, de que a árvore representa a natureza, e não que não represente, mas há outros ecossistemas que também são importantes conservá-los e valorizá-los. E entre eles, os campos nativos têm uma riqueza excepcional de espécies”.

Segundo o professor, pecuaristas preenchem o Cadastro Ambiental Rural (CAR) declarando campos nativos não como remanescentes de vegetação nativa, mas como área rural consolidada, porque estão sendo usadas na atividade pecuária há tempos.

“Por que não fizeram o mesmo com as florestas, que há séculos são utilizadas de maneira sustentável para extração de lenha ou moirões pra cerca? As florestas estão no Cadastro Ambiental Rural demarcadas como áreas remanescentes de vegetação nativa. Aqueles poucos que declararam floresta legal o fizeram, mas os campos não, praticamente não há reserva legal em campo nativo no Rio Grande do Sul”.

E desabafa:

“Isso está relacionado com a perda de 125 mil hectares por ano só no bioma Pampa, que no Brasil só existe no Rio Grande do Sul. São 125 mil hectares de campos nativos que são transformados em lavoura ou silvicultura por ano. Imagina se fossem 125 mil hectares de florestas, será que já não teriam autoridades e a população com campanha ‘salvem as florestas do Pampa’?”

Para ele, ninguém se importa. “A começar pelos pecuaristas que não se importam. A base da pecuária de cria são os campos nativos. É um serviço ambiental oferecido pela natureza que permite a produção de carne de alta qualidade, desde que seja possível o manejo adequado dessas áreas. Bem ou mal, a pecuária em campo nativo tem preservado a biodiversidade. Esses mesmos pecuaristas que têm esse benefício, acham que esses campos produzem pouco, então há uma pressão para que essas áreas sejam transformadas em lavouras e silvicultura. É uma pressão econômica para melhoria de renda, enquanto há opções de melhoria de renda simplesmente com o manejo dos campos nativos, preservando a biodiversidade. Nem os 20% que a lei obriga de reserva legal tem sido atendido”.

Quando questionado por que a soja tem sido a grande responsável pela transformação dos campos nativos em lavouras, ele afirma que a soja tem sido há algumas décadas o motor dessas transformações.

“Teve um período, em 2005 e 2006, que a silvicultura teve grande expansão, mas hoje já não é mais tão interessante para os proprietários. O arroz foi há muito mais tempo, mas o arroz tem uma grande limitação que são as várzeas, e as várzeas praticamente já se esgotaram no Rio Grande do Sul, então não há tantas possibilidades para expansão da lavoura de arroz como havia antes. Agora para soja ainda há áreas de campos nativos, em algumas regiões com solos adequados e que logo serão convertidos a continuar a inação do poder público”.

E o que se perde diante de novos recordes da safra de soja?

“Não é que a agricultura não tenha que ter seu espaço, a questão é a escala com que esse processo tem acontecido. Regiões inteiras têm se transformado, fazendas inteiras têm se transformado pela conversão de campos nativos, altamente biodiversos”.

Quando fazendas inteiras são transformadas em lavouras, ressalta, se perde até mesmo o benefício da diversificação da produção agrícola.

“A pecuária perde tanto espaço que ela se inviabiliza. Mesmo em áreas agrícolas em que seja interessante a criação de animais para abate, as regiões de cria são de campo nativo, e esses campos estão desaparecendo, então estão diminuindo as áreas de produção pecuária extensiva, pra cria, e isso acaba sendo um problema.

Então nós ganhamos produção de grãos para exportação. A economia, dizem, se beneficia, dependendo de como se mede esse ganho econômico, mas se perde também nos serviços ecossistêmicos, que são os benefícios que a natureza oferece e que vão além da produção de alimentos. Então se produz mais grãos, mas se diminui a produção pecuária e de lã. Se produz mais grãos, mas se aumenta a perda de solo por erosão, esse solo acaba nos cursos d’água, assoreando e contaminando os cursos d’água, não só pelos sedimentos, mas também pelos adubos e agrotóxicos, e isso acaba afetando a vida aquática. Então nós perdemos biodiversidade aquática, perdemos biodiversidade que talvez nunca venhamos a conhecer.

Nos levantamentos dos nossos grupos de pesquisa, frequentemente são encontradas espécies que nunca haviam sido descritas pela ciência, ou seja, há espécies ainda por serem descobertas que talvez nunca venham a ser descobertas porque se extinguirão antes. É algo assustador. Estamos perdendo biodiversidade antes mesmo de conhecê-la.

Então é isso que se perde, se perde qualidade de vida, paisagens agradáveis e atrativas com potencial turístico estão se perdendo. A economia no geral perde, porque perde as possibilidades de diversificação, porque cada vez fica mais focada na agricultura e, na agricultura, numa cultura. Até o arroz está perdendo área, e é um alimento de primeira necessidade.

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