Diante da denúncia de que uma menina de 12 anos teria sido estuprada e morta por garimpeiros na comunidade Aracaçá, a Hutukara Associação Yanomami se manifestou em nota nesta sexta-feira (6). Declarou que tenta reconstruir os eventos denunciados e que embora não tenha reunido informações suficientes para esclarecer a ocorrência – ou não – do crime denunciado, recolheu informações que revelam um grande histórico de tragédias associadas ao garimpo na comunidade. São casos de assassinato, suicídios, prostituição e constantes abusos sexuais contra mulheres.
Ainda que não com o mesmo rigor de apuração, o presidente do Conselho de Saúde Indígena (Condisi-YY), Júnior Hekurari havia mencionado alguns dos casos apontados pela Hutukara, à Mídia Ninja, quando ele relatou detalhes da viagem que fez junto a agentes da Polícia Federal e representantes do MPF e Funai para investigar as denúncias da morte da menina, vítima de estupro e da criança de 4 anos teria morrido afogada, durante o mesmo ataque criminoso de garimpeiros à comunidade.
Quando chegaram lá, encontraram a principal morada da comunidade, queimada. Os moradores não estavam mais lá. Haviam hipóteses de que como parte de um ritual fúnebre, o corpo da menina tivesse sido cremado e a conforme a cultura Yanomami, depois disso, os moradores tivessem buscado um novo local para morar.
A incerteza sobre o paradeiro da comunidade mobilizou defensores das causas indígenas que cobravam investigação do poder público. Como já havia dito após o retorno a Boa Vista, em coletiva de imprensa nesta sexta-feira (6), a Polícia Federal reafirmou que não há indícios do crime, mas que seguirá com as investigações. A conclusão do caso depende também do resultado do laudo da análise das cinzas coletadas no local que poderá detectar a presença de algum material orgânico ou biológico.
A Hutukara declara na nota que ao longo da semana tem realizado entrevistas com indígenas que vivem perto da região e uma idosa da comunidade que está na cidade de Boa Vista para receber atendimento médico.
“As informações obtidas até o momento confirmam o cenário desolador vivido pela comunidade a partir das relações impostas por garimpeiros com reiterados depoimentos de violência sexual em série”, diz trecho da nota.
Segundo a Hutukara, os relatos orais registrados foram cruzados com dados oficiais do Distrito de Saúde, como dados dos censos populacionais de 2017 e 2022 e registro de óbitos. Assim, foi possível identificar a cronologia dos episódios narrados. A Hutukara não revelou os nomes citados para preservar a segurança de seus informantes.
A Hutukara revela que foi possível levantar que o histórico de tragédias na comunidade remonta o ano de 2017, com a morte do homem conhecido com C. Sunumá, pois na lista de óbitos do polo de Waikás (que atende Aracaçá) há um registro de morte por disparo de arma de fogo. Trata-se de uma vítima na faixa etária entre os 40 e 59 anos, que a Hutukara diz que muito provavelmente, é de C. Sunumá, pois o homem foi morto violentamente durante uma briga fomentada pela distribuição de cachaça por garimpeiros aos indígenas, acima da comunidade e perto de uma cachoeira.
Segundo os relatos colhidos pela Hutukara, C. Sunumá tinha duas mulheres, que ficaram em situação de extrema vulnerabilidade e tiveram de se prostituir nos acampamentos de garimpo. Uma delas, a segunda, como narra a Hutukara, teria morrido em seguida. Há diferentes versões para sua morte, mas no registro de óbitos há um caso de falecimento de uma mulher de mesma faixa etária, em 2018, por envenenamento autoprovocado.
Após a morte de W., como aparece citada na nota da Hutukara, uma filha de C, com a primeira esposa, aos 16 anos, também foi levada para se prostituir em acampamento próximo a Aracaçá. “As entrevistas apontam que ela era explorada sexualmente por garimpeiros, por vezes, sendo obrigada a manter relações sexuais com mais de uma pessoa ao mesmo tempo”.
Citada como K., no documento da Hutukara, a jovem teria ficado grávida e perdido o bebê, que teria morrido em decorrência de um traumatismo craniano. Há registro de óbito de um bebê em 2019.
A jovem também teria ainda sofrido com sequelas decorrentes de relações sexuais violentas a que era submetida. E que um acidente a teria deixado com dificuldades de locomoção. Depois disso, K. engravidou de um garimpeiro conhecido como pastor e seu filho lhe foi tirado, levado para a cidade de Boa Vista.
“Desesperada tirou a própria vida se enforcando. A versão também confere com o registro de óbitos do ano de 2021”, realça a Hutukara. Uma filha de W. e outra de K. teriam ficado sob a guarda da mulher idosa que está em tratamento médico em Boa Vista.
“A sequência de tragédias que marcaram família de C. Sunumá demonstram que na aldeia de Aracaçá há casos generalizados de abusos e violências. A vulnerabilidade das pessoas da comunidade é tamanha que é bastante provável que episódios assim se repitam cotidianamente. Os fatos narrados corroboram a percepção dos Yanomami da região de Palimiu, que em 2021, relataram o receio de que vivessem uma tragédia similar à de Aracaçá, que está levando ao desaparecimento da comunidade”.
A Hutukara ressalta ainda, que as denúncias sobre Aracaçá só podem ser compreendidas dentro desse cenário ao qual metade das aldeias da Terra indígena Yanomami está sujeita”.
A Associação Yanomami diz que é preciso que seja realizada apuração ampla e rigorosa, pois “por se tratar de um povo indígena que vive conforme seus costumes tradicionais e falante de sua língua ancestral esse trabalho exige a participação continuado de especialistas com formação em antropologia, com domínio da língua e durante tempo suficiente para que os fatos sejam analisados com a profundidade que merecem”.
A nota reforça também, que a tradição cultural Yanomami, o corpo e os pertences dos mortos são incinerados de modo que “é bastante provável que, ocorrido o assassinato, os restos mortais da vítima sejam impossíveis de se localizar, a não ser a partir de suas cinzas. Por isso é fundamental a coleta de relatos, e a busca por testemunhas da comunidade”.
A Hutukara clama por comprometimento do poder público e apoio da sociedade para a proteção das terras indígenas, da terra-floresta e das vidas indígenas, lembrando que se a União tivesse cumprido a ordem judicial do Tribunal Regional Federal da 1ª região, que em 2020 determinou a retirada dos garimpeiros ilegais das terras, muitas das tragédias como estas denunciadas, teriam sido evitadas. “Queremos viver em paz”.
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