A realização de audiência pública organizada pela Assembleia Legislativa no sábado, dois de outubro, em Cruzeiro do Sul, para tratar do projeto de construção da rodovia que conecta a segunda maior cidade acreana a Pucallpa, no Peru, revelou que a verdadeira intenção dos seus pais ideológicos é uma só: passar a boiada numa das regiões mais intactas da Floresta Amazônica, e bastante rica em recursos naturais cobiçados por atividades econômicas predatórias.
Os defensores da rodovia não estão preocupados em, como costumam propagar, tirar o Acre do “atraso deixado pelos 20 anos de florestania” ou promover o desenvolvimento do Juruá. Não. Eles querem apenas viabilizar atividades econômicas de interesse de grandes empresários da região – e de indústrias como a petrolífera e a mineradora – e que, obviamente, trarão dividendos políticos e financeiros de nossa classe política.
Estes, por sinal, vão a cada dia consolidando seu poder e capital econômico por meio do coronelismo e patriarquismo dos velhos seringalistas, elegendo filhos, filhas, genros, esposas, amantes (e até ex-esposas) para a consolidação de uma ultrapassada visão de mundo e do que seja desenvolvimento. Os nossos coronéis de barranco do século 21 não estão preocupados com as comunidades indígenas, ribeirinhas, extrativistas, os pequenos produtores rurais.
Eles são só olhados por nossos salvadores da pátria a cada ano de eleições. São vistos apenas como mão-de-obra barata para enriquecê-los ainda mais; querem a floresta que está nos seus quintais. E assim se articulam pelos cafés e churrascarias de Brasília para acabar com o Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD), transformando-o numa Área de Proteção Ambiental (APA).
Como explicou o senador Márcio Bittar (MDB), o mentor intelectual do projeto de lei (PL 6024) que rebaixa o PNSD para APA, a Serra do Divisor possui inúmeras riquezas que, de acordo com ele, foram deixadas por Deus para serem exploradas pelo homem, para enriquecer o homem. Entre essas riquezas divinas e muito lucrativas estão o petróleo, o gás natural, a mineração, espécies de madeira de altíssimo valor comercial.
Essas são atividades econômicas que não vão incluir os povos da floresta que moram no seu entorno – muito pelo contrário. Os impactos sociais são imensuráveis. Temos inúmeros exemplos disso na Amazônia brasileira e de nossos vizinhos. O próprio Peru é uma péssima referência nos impactos sociais e ambientais que essas indústrias provocam; comunidades inteiras são forçadas a se mudar, empurrando-as, aí sim, para a completa miséria nas cidades.
A fala de Márcio Bittar – feita pela tela de um computador, pois tem pouco hábito de estar pelo Acre – revelou quais são os verdadeiros interesses em construir uma estrada até Pucallpa, rebaixando o status de unidade de proteção integral da Serra do Divisor: devastar uma das regiões mais ricas em biodiversidade do Planeta e colocar em risco a segurança de centenas de ribeirinhos que estão hoje com sua segurança fundiária.
Isso sem contar as ameaças para os territórios dos povos indígenas já contactados e os isolados que habitam essa região da fronteira. Falam que as terras indígenas não serão afetados por o traçado da estrada passar longe delas. Se estudassem, saberiam que os impactos de uma rodovia não ficam só às suas margens. Estendem-se para além. Na verdade eles sabem disso, mas acham que nós temos uma bolinha vermelha no nariz.
Na verborragia propalada pelo ex-comunisra e hoje conservador bolsonarista Márcio Bittar, sobrou até para Leonardo DiCaprio, o ex-governador Jorge Viana e a ex-senadora Marina Silva; disse que o ator americano não tem moral para falar sobre a Amazônia por não morar nela; Bittar também pouco aparece por aqui.
Para piorar ainda mais a situação, o vice-governador, Major Rocha (PSL), tentou provocar o Ministério Público, presente na audiência, questionando o porquê de haver o turismo dentro do PNSD. Segundo ele, por ser uma unidade de proteção integral, nem isso poderia acontecer lá. Enquanto tenta melar uma atividade que assegura renda de forma sustentável às famílias do parque, Rocha defende uma rodovia cujo único legado será a destruição dessa mesma Serra do Divisor.
Só para lembrar: Rocha é irmão da deputada federal Mara Rocha, a bolsonarista autora do PL 6024, que, além de transformar o PNSD numa APA, reduz o tamanho da Reserva Extrativista Chico Mendes. Como é bom ter a parentela dominando a política.
E o governador Gladson Cameli? Não deu as caras pelo Teatro dos Náuas. Mandou o seu emissário para assuntos internacionais, responsável pelas articulações com as autoridades peruanas para viabilizar a rodovia Pucallpa-Cruzeiro do Sul.
Mesmo após Lima já ter dito não ao projeto, Cameli tenta passar a impressão de que os vizinhos estão sim muito interessados na rodovia. Para isso, usaram o vídeo do governador de Ucayali (chamado pelo assessor internacional de governador do Peru) defendendo a integração rodoviária com o Acre. Aliás, o governador do departamento vizinho parecia estar bem constrangido.
Outro fator a chamar a atenção da audiência pública é a concepção dos gênios intelectuais do governo Gladson Cameli sobre o que seja um parque nacional, em seu conceito como unidade de conservação. Para eles, a Serra do Divisor deveria ser uma grande parque de diversões com rodas gigantes, montanha-russa, tobogã e, quem sabe, um Jurassic Park para assustar os visitantes no meio da selva desmatada, como já sugeriu nossa secretária de Turismo, Eliane Sinhasique.
O assessor (ou açessor?) internacional do governador expôs na sua apresentação como exemplos de sucesso de parques o Grand Canyon, nos Estados Unidos. Até agora não entendi a razão desta parte do deserto do Arizona ser levado para um debate sobre um parque ambiental – que é uma das categorias de unidade de conservação no Brasil – na mais importante floresta tropical do planeta. Talvez seja porque eles, aos poucos, vão transformando a Amazônia numa grande savana.
Só falta o governo Gladson Cameli citar o Beto Carrero World como exemplo de parque a ser adotado na Serra do Divisor.
Este é um resumo do espetáculo do grotesco que foi a audiência pública. Se alguém tinha alguma dúvida sobre quais as reais intenções de quem defende construir uma estrada no meio do nada – numa região com muita, mas muita riqueza para ser explorada – agora não há mais. Agora, é ficar atento aos próximos passos da bancada da motosserra, que trabalha para aprovar, no Congresso Nacional, o PL 6024.
Texto original em fabiopontes.net