Com pouco mais de 100 mil habitantes e rodeada por Unidades de Conservação (UC), Itaituba, cidade no sudoeste do Pará, abriga uma outra cidade paralela nos limites do município. A cada 11 anos, o garimpo São João despeja 84 milhões de toneladas de rejeitos tóxicos no rio, a mesma quantidade despejada no desastre da barragem de Mariana, ocorrido em 2015, em Minas Gerais, e considerado um dos maiores crimes ambientais da história recente do Brasil.
Com cerca de 27 mil garimpeiros, o caminho até o garimpo São João passa pela rodovia Transgarimpeira, às margens da BR-163, construída para facilitar a extração de ouro no local ainda durante a ditadura militar brasileira, nos anos 60.
Em Itaituba são pelo menos 2.700 focos de garimpo ocorrendo fora da área do único legalizado: São João. O levantamento foi realizado pelo Instituto Escolhas e divulgado no início de outubro deste ano.
Os dados relacionam o avanço do desmatamento e a operação de garimpos na Amazônia como principais vetores de processos de devastação ambiental e degradação das águas e do solo. A investigação também expõe o lobby empresarial para legalização de atividades garimpeiras em UCs na região do rio Tapajós.
Oficialmente legalizado durante o primeiro ano do governo Bolsonaro
Proprietário e ‘prefeito’ do garimpo São João, o empresário José Antônio Pereira dos Santos ganhou no primeiro ano do governo Bolsonaro sua primeira lavra de autorização para operar garimpos em Itaituba, e o garimpo São João se tornou oficialmente legalizado, apesar de operar desde 1989.
Agora, Pereira dos Santos quer ampliar sua área de extração. Ele possui 246 pedidos de exploração mineral na região do Tapajós, e é o presidente da Cooperativa dos Garimpeiros de Moraes Almeida e Transgarimpeira (Coopertrans). A cooperativa é responsável por liderar protestos contra apreensão de equipamentos usados nas atividades garimpeiras ilegais durante operações de órgãos ambientais como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), chegando, inclusive, a ameaçar ações atear fogo em veículos utilizados pelos fiscais.
A Coopertrans também financia projetos de pesquisa para avanço do garimpo em Unidades de Conservação com a justificativa de que a atividade garimpeira legalizada diminui as taxas de desmatamento, que neste ano registraram recordes históricos de acordo com dados oficiais. Ao contrário do que afirma Coopertrans, o relatório do Instituto Escolhas aponta que as atividades de mineração foram uma das principais causas de desmatamento na Amazônia, seguida pela atividade agropecuária.
Pra se ter uma ideia, só em 2019 o garimpo foi a principal causa da degradação ambiental da Terra Indígena Munduruku. Dos 1.926 hectares de desmatamento registrados na TI, 71% havia sido causado por atividades de mineração ilegal. Dos 197 hectares de degradação registrados nos primeiros meses de 2020, 90% foi devido a esse tipo de atividade, conforme o relatório do Instituto Escolhas baseado em dados do Instituto Socioambiental (ISA).
Em 2019, a cooperativa foi a única a obter uma autorização para explorar ouro na Amazônia. Sob comando do militar da reserva Eugênio Furtado, a Agência Nacional de Mineração (ANM) concedeu título definitivo de exploração de um total de 21 km² na região do Tapajós, para a cooperativa comandada por Pereira dos Santos. Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
“Eu votei [para presidente] no marido daquela mulher que trabalha na tevê”, referindo-se ao então candidato do Partido Democrata Trabalhista (PDT), Ciro Gomes. “Me arrependi. O Bolsonaro ajudou muito. O pai dele era garimpeiro, ele enxerga. Está com a sociedade. Sabe que o garimpo gera muito emprego, tira da bandidagem”, disse Pereira dos Santos em entrevista ao Instituto Escolhas.
A Geoconsult (Geologia, Mineração e Serviços Ambientais) rastreou os garimpos ativos entre agosto de 2018 e agosto de 2019, na região em que opera a Coopertrans de Pereira dos Santos. O mapa abaixo indica tanto os garimpos legalizados como os irregulares e os ilegais. As três categorias somavam uma área de pouco mais de 6 mil campos de futebol, incluindo garimpos em Terras Indígenas.
Em cinza, entre a APA Tapajós, a área legalizada em 2019 para operação do garimpo São João, de Pereira dos Santos. Os pontos vermelhos são os focos de garimpo
Guilherme Aggens, engenheiro florestal da Geoconsult (Geologia, Mineração e Serviços Ambientais), que atua na liberação de garimpos em Itaituba, afirma que não tem como saber a origem do ouro que sai das áreas de extração no Tapajós. “O ouro vai sair, tem de saber se sai legal ou ilegal. Tem gente que chega com avião e dinheiro e leva o ouro. Impossível ter a dimensão de quanto é legal ou ilegal. Não tem como saber, na realidade”, argumenta.
Uma denúncia do Ministério Público Federal (MPF) destaca que a atuação de garimpos na região do Tapajós coloca ouro extraído de forma ilegal em áreas de proteção dentro do mercado global de ativos e contam com destino certo: a bolsa de valores. De acordo com a denúncia apresentada em 2019, só da região onde opera o garimpo São João, 611 quilos de ouro, avaliados em mais de 70 milhões de dólares, podem ter sido negociados no mercado financeiro.
“Foi uma das maiores investigações sobre o garimpo ilegal e constatou a falta de controle sobre a cadeia econômica do ouro”, segundo o procurador Luís de Camões Boaventura. Os investigadores tentam agora barrar que a prática se torne legal e avance para áreas indígenas. Processo aguarda julgamento no Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1).
Na última semana, indígenas Munduruku e Kayapó, da região do Tapajós e Alto Xingu, emitiram uma carta onde reafirmam serem contrários às atividades do garimpo nas terras indígenas, e denunciam que o governo brasileiro e a Fundação Nacional do Índio (Funai) tem incentivado a atividade ilegal nas TIs.
Uma nova Mariana a cada 11 anos no Tapajós
Enquanto o governo brasileiro continua a dar sinais de que o funcionamento de garimpos ilegais pode ocorrer de forma normal na Amazônia, um relatório da Polícia Federal de 2018 destaca que sete milhões de toneladas de sedimentos de garimpo são lançados na calha do rio Tapajós por ano, e vai além. O laudo policial compara esse dado à estimativa de lançamento de 84 milhões de toneladas de rejeitos de mineração na bacia do rio Doce, do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana (MG), em novembro de 2015.
“Dos garimpos da bacia do rio Tapajós, temos um despejo estimado de no mínimo sete milhões de toneladas por ano, o que equivaleria a dizer que, a cada 11 anos, a atividade garimpeira despeja no rio Tapajós a mesma quantidade, em massa, de sedimentos que a Samarco despejou no Rio Doce, quando do rompimento das barragens de rejeitos. Caso seja convertido em volume, essa proporção é ainda maior, dado que a densidade dos sedimentos de mineração de ferro de Mariana é muito maior do que a do solo da bacia do Tapajós”, conclui o laudo de 2018.
Para a professora do curso de geologia Jucinete Cardoso, da Universidade Federal do Pará (UFPA), quanto mais as normas ambientais forem colocadas em segundo plano no debate sobre a legalização dos garimpos na Amazônia, mais chances tem da floresta não suportar os produtos químicos utilizados durante a extração. “Sem normas técnicas estabelecidas e fiscalização ativa, fica impossível garantir que o solo atingindo pela prática do garimpo volte a produzir ecossistemas. No caso, volte a gerar vida, ou permitir que ela aconteça”, pontua à Casa Ninja Amazônia.
Corrida pelo ouro
Diante do cenário da pandemia e crise econômica, os ativos financeiros que o ouro causa devido sua estabilidade de preço pode levar a uma nova corrida pelo ouro na Amazônia, tal qual foi incentivada pelos militares durante a ditadura.
Até agora, as exportações brasileiras cresceram 30,5%, isso corresponde a um lucro de US$ 3 bilhões. Para se ter ideia, a extração ilegal de 1kg de ouro na Amazônia gera R$ 1,7 milhão em danos ambientais, segundo cálculos do MPF.
“A exploração do ouro no rio Tapajós é um perigo não só pelo impacto ambiental. Na região há registro de povos indígenas isolados que vivem em um ambiente harmônico, até então, mas que cada vez mais estão sendo afetados pelo avanço de atividades criminosas como a do garimpo”, destaca a professora Jucinete Cardoso.
A pergunta que fica é: quem ganha com o avanço da regularização dos garimpos nas Unidades de Conservação?