Declaradamente contrário às demarcações de terras indígenas em um país onde 246 territórios ainda estão pendentes de homologação, com seu discurso, Jair Bolsonaro ameaça o direito à terra que os povos originários têm no Brasil, cláusula pétrea da Constituição Federal.
A necropolítica vigente faz dos indígenas as principais vítimas de tentativas de assassinato, os mata e estimula invasões a seus territórios.
Relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT) revela que das 18 pessoas mortas em 2020 no contexto dos conflitos no campo e dentre as populações tradicionais, predominam indígenas. Sete morreram em 2020: o munduruku Josimar Moraes Lopes (AM), Kwaxipuru Kaapor e Zezico Rodrigues Guajajara (ambos do Maranhão); Virgínio Tupa Rero Jevy Benites (PR), Ari Uru Eu Wau Wau (RO) e os yanomami, Original e Marcos Arokona, de Alto Alegre (RR), mesma região ameaçada por garimpeiros ilegais.
Os sete casos representam 39% das vítimas. Entre elas, 1 assentado, 1 advogado de defesa agrária, 3 ribeirinhos, 3 quilombolas, 1 posseiro e 2 sem terra. Já dentre as 35 pessoas que sofreram tentativas de assassinato, 12 também são indígenas (34% das vítimas), assim como entre as 159 pessoas que foram ameaçadas, 25 são indígenas (16%).
As invasões a seus territórios são um mal que assola as populações indígenas. Em 2020, o número de famílias atingidas dobrou.
Invasões a territórios atingem o dobro de famílias em 2020
Estimuladas pelo projeto político brasileiro que usa o desenvolvimento econômico como argumento para tudo, as invasões a territórios indígenas cresceram exponencialmente nos últimos dois anos, mas 2020 bateu recordes, principalmente nas modalidades invasão e grilagem.
Em 2020, 71,8%, das famílias vítimas de invasões são indígenas: 58.327 do número total de 81.225 casos. Em 2019, essa porcentagem foi de 66,5% (26.621) e em 2018, 50,1% (14.757). Se considerado apenas o incremento das famílias indígenas impactadas, entre 2018 e 2020, o percentual é de 295%. O número total de famílias vítimas de invasões passou de 40.042 em 2019 para 81.225 em 2020. Um aumento de 102,85%.
As invasões são instrumentos para a exploração de recursos naturais, como quando são colocadas cercas para impedir acesso a fonte de águas ou quando adentram seu território para realizar pesca predatória; há casos de retiradas de cerca e também de gado à solta em TIs. Enfim, quando tem invasão, vêm junto também, desmatamento ilegal, grilagem, pistolagem, exploração mineral e tudo mais que ameace a integridade física e cultural dos povos originários.
O Gráfico abaixo mostra a distribuição geográfica da violência “invasão” e revela a predominância da Região Norte no avanço das ocupações ilícitas de territórios originários, fato resultante da expansão acelerada, e muitas vezes ilegal, do agronegócio e da mineração na Amazônia, avalizada pelo discurso e pela prática institucional anti-indigenista do governo federal.
Com relação à grilagem, 2020 é igualmente superlativo, com 7.252 famílias indígenas entre um total de 19.489 (37,2%), em profundo contraste com dois anos antes, quando indígenas somaram 1.381 de 15.037 famílias, 9,2%.
Política incentiva invasões e exploração de TIs
O coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Eloy Terena, afirma que os povos indígenas estão à mercê de uma política que incentiva invasões e exploração dos territórios.
“Desde o primeiro dia de seu mandato, já no ato de posse, apresentou ao Congresso Nacional a Medida Provisória 8702, que retirava a atribuição de demarcação de terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) e a transferia para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), além de retirar o órgão indigenista de Estado da tutela do Ministério da Justiça. Esse último ato também foi viabilizado pelo Decreto n. 9.673/19, assim como a transferência da atribuição de regularização fundiária das terras indígenas foi viabilizada pelo Decreto n. 9.667/19”, relembra.
Ele explica que invasores de TI poderão solicitar a Declaração de Reconhecimento de Limites (DRL) à Funai e, munidos desse documento, requerer junto ao Incra, por meio de cadastro autodeclaratório, a legalização dessas áreas invadidas. Tais normas potencializam o conflito, o desmatamento e os incêndios em terras indígenas.
Em 2020, como ressalta Eloy Terena, quase 800 km² de floresta foram derrubados nos três primeiros meses, um aumento de 51% em relação ao mesmo período de 2019. Um terço da devastação ocorreu em terras públicas, alvo preferencial dos grileiros.
É preciso destacar que, além dos problemas estruturais causados pela não demarcação de terras indígenas e pela ausência de proteção naquelas já demarcadas, os povos e comunidades indígenas são assolados pelo avanço da pandemia da covid-19, em todas as regiões do país.
A situação se agrava diante da total inoperância e omissão do governo brasileiro em elaborar o “plano de enfrentamento da COVID-19”, determinado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em julho de 2020, por ocasião do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 709. Somente em março de 2021, portanto, oito meses depois, que o STF homologou parcialmente e com ressalvas a quarta versão do plano apresentado pelo governo brasileiro.
Eloy alerta também para o projeto legislativo de implosão de direitos. Em fevereiro, com a eleição dos novos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, o governo federal apresentou um pacote de pautas prioritárias. Dentre elas, inclui-se o Projeto de Lei n. 191/20, o qual ‘regulamenta o § 1º do art. 176 e o § 3º do art. 231 da Constituição para estabelecer as condições específicas para a realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas e institui a indenização pela restrição do usufruto de terras indígenas’. Trata-se de abrir as terras indígenas para exploração minerária”. Povos que vivem isolados e os de recente contato são os mais vulneráveis nesse cenário.
Desmatamento
Com o avanço das invasões, vêm também os altos índices de desmatamento, que comprometem a vida nas TIs. Eloy exemplifica com base em dados de de degradação florestal dos sistemas Prodes e Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Os dados constam em relatório técnico apresentando pela Apib, ao Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito da ADPF n. 709.
Segundo os números, há uma perda significativa de vegetação no interior das TIs detectada nos dois últimos anos, um indicativo grave de invasão com as finalidades de exploração ilegal dos recursos naturais e de apropriação fundiária, processos estes que podem comprometer a sobrevivência física e cultural de povos originários e, no limite, levá-los ao extermínio. “Aspectos da violência que retratam o genocídio atual”, reforça Eloy.
Em 2020, a taxa oficial do Prodes registrou 1.108.800 hectares desmatados na Amazônia legal, a maior taxa desde 2008. A alta é de 9,5% em relação ao ano passado. Os números representam um indicador do efeito das políticas ambientais do governo Bolsonaro.
Segundo os dados do Prodes, o desmatamento total nas TIs da Amazônia Legal já destruiu mais de 1,6 milhão de hectares. Entre os anos de 2019 e 2020, o desmatamento nas TIs já acumulou 89.769,8 hectares.