Nezinho teve o terreiro queimado por duas vezes e outros infortúnios os abateu mas ele não perde a ternura (José Medeiros)

 

Ao responder a uma solicitação de entrevista da Casa Ninja Amazônia, Pai Nezinho responde por gravação de voz: “Boa tarde, Deus abençoa, Deus proteja, Deus te alumina (sic), a todo momento. Manda um áudio que não sei ler, daí eu escuto. Que Deus abençoa”.

Mesmo só visualizando o “desenho” da mensagem e sem saber do que se trata é assim que Nezinho dos Santos atende quem busca por ele. Seu coração, mesmo precisando agora de uma força – 14 comprimidos de remédio por dia – tem potência e tamanho infinito para o amor.

O dono de terreiro tombado como Patrimônio Histórico e Cultural pelo Iphan, nasceu “aparado” pela finada Mãezinha Aleixa no Quilombo de Mata Cavalo de Cima, em Nossa Senhora do Livramento (a 43 km de Cuiabá-MT), e desde esse momento, lá fincou suas raízes. De onde só sai por motivos extraordinários.

Acorda todo dia às 4h da manhã, toma guaraná ralado – praticamente um vício -, café e sai para alimentar as criações: galinhas e porcos. Depois volta para casa, faz almoço, que costuma variar entre carne com mandioca e carne com banana verde – e que já fica para a janta – e segue para a roça. Volta e cuida dos afazeres de casa. “TV eu não assisto não. Depois é só reza”.

Pode ser que entre um afazer e outro, alguém peça socorro para benzer. “Me chamam a qualquer hora, até de madrugada. Agora que eu estava nos preparativos da festa, pedi que me dessem um tempo”, se diverte. Ele também segue a medicina tradicional.

As crias e a roça de arroz, banana e mandioca são para subsistência, mas também, cultivadas para quando é chegada a hora de realizar a famosa festa de São Benedito que ele lidera desde os dez anos de idade. No dia 16 de julho, comemorou 63 anos em meio aos preparativos para o domingo (18).

“Mas como assim?”, perguntamos. “É que como eu te disse, não sei ler. Mas tudo que eu sei da minha cultura, aprendi com meus pais e avós. Foi minha avó Benedita Porfíria, que determinou que eu desse continuidade a essa tradição”.

A terra foi o tataravô, Marcelino Paes de Barros que conquistou. “Ele é dono de tudo isso. Foi libertado aos 42 anos, garimpou e comprou a segunda parte, Mata Cavalo de Cima”, se orgulha. E ao honrar essa história, certamente que os pais, dona Maria Lucinda e seo Manoel Francisco dos Santos também estão felizes com sua trajetória.

A partir de edital da Lei Aldir Blanc em Mato Grosso, tornou-se Mestre da Cultura. “Chorei muito quando me disseram isso. Sabe, eu tive uma infância sofrida, doída mesmo. Não tive lazer, não tive escola. Foi só na roça. Vovó Benedita me ensinou muita coisa. Foi por isso que eu fiquei com a festa porque desde pequeno já trabalhava amassando bolo”.

O primeiro prato oficial que fez para a festa em homenagem ao santo negro, que também era conhecido por seu talento na cozinha, foi uma feijoada. Ele cozinha então, dos 10 aos atuais 63 anos. Alguém duvida das suas habilidades? “E agora eu estou aqui na correria para fazer o café da manhã e almoço. Assim como no ano passado, com essa pandemia, vai ser só reza e esse almoço. Aqui no Quilombo, já está todo mundo vacinado”.

Para começar o dia os convidados vão apreciar o tradicional “chá co bolo” da Baixada Cuiabana, com bolo de queijo, principalmente. Já no almoço, será servido sarapatel, salada, arroz, mandioca, ensopadão de mandioca com carne e carne assada. Tudo que ele tira do seu quintal. “Dou de comer para o meu povo com o meu suor, não gosto de pedir nada, ficar chorando no pé dos outros”.

Mesmo com a pandemia e todas as restrições, ele está tranquilo. “Eu faço tudo de comida. E mesmo quando há mais ou menos seis anos um câncer me colocou na cadeira de rodas, que eu ainda o enfrento, foi tudo feito por mim mesmo. De cima dela fui para a frente do fogão. Agora eu estou muito melhor”.

Mesmo tendo que lidar com a doença, com discriminação racial, de sexualidade e crença, Nezinho é pura resistência. “Evangélicos já tacaram fogo nele duas vezes”, conta. “E tem ainda o racismo, que não acabou. Mas o branco esquece que é o negro quem coloca o prato na mesa dele”.

Símbolo de resistência, Nezinho luta contra o preconceito contra sua cor, crença religiosa e orientação(José Medeiros)

E o preconceito vem até mesmo da família, que segundo ele, não o aceita. “É por isso que não confio em parente. Confio em Deus e em outros amigos. Nasci gay e minha família não me aceita, paciência. Eles lá e eu cá”.

Pai Nezinho diz que sente muito pelos corações amargurados, mas não se deixa abater. Há problemas muito maiores, como a destruição ambiental. “Tem tanta coisa ruim que a gente tem que lidar, não é? O que têm feito com a natureza, por exemplo. É a mão do homem que tem destruído ela. Deus já tinha me mostrado que viria essa pandemia, avisei muita gente que eu tinha tido um aviso em sonho sobre a morte de muitas pessoas e então, 20 dias depois começou a pandemia”, relembra.

Partindo de sua relação e observação da natureza, ele vê mudanças nos ciclos das chuvas e que isso impactou sua vida. “Não tem mamão, não tem mais a chuva do caju. Peixe? Piorou!”.

Na caminhada da vida, ele agradece a parceiros que não têm o mesmo sangue, mas têm as mesmas esperanças. “Tem companheiros que levo muito comigo, que são José Medeiros, Adia Borges, meus companheiros mesmo. Devo muito a eles, assim como a Cristóvão, Amélia que me ajudou no reconhecimento do meu terreiro do século passado e Mãe Maria”.

Na sua existência, reforça, há muita confiança em Deus. “Eu confio em Deus, que sabe o que é melhor para mim. O dia que eu tiver que ir embora, eu sei que vou deixar saudade. Muita gente vai agradecer, vai chorar, lembrar desses momentos como a Festa de São Benedito. Que a gente tenha vida longa, seu Deus permitir”.

Nezinho segue assim, com esperança, na labuta do território, na luta legítima pela manutenção das tradições de seus antepassados quilombolas e resistência e combate à discriminação.