Mulheres Indígenas e as faces da desigualdade em tempos de pandemia

Texto: Kari Guajajara – Foto: Midia Ninja

O som das vozes que ecoam durante a pandemia rediz sobre o normal que já marginalizava pela hierarquização valorativa de vidas. Falam das realidades pré-existentes para contar das desigualdades modeladas do tamanho e formato de nossas raízes, nos desafiando a nomear e especificar o silenciamento das invisibilidades para fugir do risco de um amanhã ainda mais injusto que o ontem e o hoje. Nomear silenciamentos é a própria demarcação do ser para superar as ausências estruturadas pela simplificação de nossas sociedades.

Perguntar quem são as mulheres indígenas nesse cenário é buscar faces e nomes por trás do discurso universal que nos desconhece tanto na diversidade de 305 povos e 274 línguas, quanto em categorias de gênero que não comportam nossos conceitos. Ecoa o chamado das agências políticas pela autodemarcação da interseccionalidade que passa a assumir a instrumentalidade em prol da pretensão necessária de consideração da interação entre duas categorias historicamente utilizadas para subordinação: gênero e etnia.

Se revelam em protagonismos incidentes para influenciar os constructos sobre as perspectivas da identidade feminina indígena dentro e fora das comunidades. Se reconstrói sobre o outro, o ser mulher indígena, pela autonomia do dizer pela própria voz, nas vivências de resistência e reexistências. É aqui que nos encontramos. Todas nós. Avós, mães, cacicas, pajés, guardiãs da cultura, lideranças, estudantes, advogadas, médicas, unidas como faces diversas de uma luta que se complementa em cada aspecto de resistência, para dizer novas formas à interseccionalidade que configura identidades de sujeitos constitucionalmente considerados, mas politicamente esquecidos e ignorados.

A pandemia une nossos corpos, e nós unimos nossas faces para resistir ao apagamento articulado. O silêncio dos dados, a subnotificação da nossa existência, é uma realidade às mulheres indígenas mesmo antes da crise sanitária, e agora, embora os números oficiais informem sobre a dinâmica de notificação, eles não refletem necessariamente a extensão da pandemia. A ausência de ponderação existencial específica nos chama para pensar de maneira crítica e atenta à necessidade de ressignificação do ser como sujeito de direito.

O silêncio é propósito que tem foco determinado – nossos territórios. É jogo que articula sobre o extermínio de nossos corpos o vazio necessário para justificar a usurpação de nossos domínios originários. São os interesses sobre nossas terras que sempre determinaram o valor da vida indígena nesse país, e nós mulheres indígenas já falávamos sobre isso antes da pandemia “Somos totalmente contrárias às narrativas, aos propósitos, e aos atos do atual governo, que vem deixando explícita sua intenção de extermínio dos povos indígenas, visando à invasão e exploração genocida dos nossos territórios pelo capital”. Pensar desigualdades a partir do cenário da crise sanitária é considerar que o silenciamento existencial e a violação do direito aos territórios são duas grandes armas utilizadas para dizimar os povos originários.
Mas o território é também a soma de nossas vozes. Nos posicionamos pela ligação entre nossos territórios, nossas vidas e nossos corpos, afirmando que a garantia da demarcação das terras indígenas é condição para proteção do ciclo de vida. Pautar a demarcação e a proteção dos territórios é premissa para pensar a consolidação de direitos e garantias a nós, mulheres indígenas.

Essa provocação é por delimitar o direito originário às terras tradicionalmente ocupadas como eixo central na configuração dos demais direitos e de políticas que se pretendam ao enfrentamento da pandemia do Covid-19. É indispensável pensar como temos lidado com, além de ausências de políticas específicas de enfrentamento à pandemia, a omissão do dever constitucional de proteção nossos territórios.

Nossas casas (terras) estão sendo invadidas por garimpeiros, madeireiros, posseiros e missionários encorajados pela omissão de quem detém a responsabilidade legal de assisti-las. Consequentemente nos expõem ao coronavírs, implantando uma política genocida que arranca os pilares dos nossos territórios, as multiplicadoras dos nossos saberes tradicionais, as nossas anciãs.