Dignidade e respeito. Cidadãos amapaenses sofrem com o descaso em relação ao apagão ocorrido no dia 3 de novembro.

Desesperança no olhar. Créditos João Teles

Por Laura Machado

A falta de esperança e a descrença em relação ao poder público são duas sensações frequentes na vida de quem mora em lugares mais afastados da capital do Amapá, Macapá. Perdas incalculáveis, privação do sono, estresse e medo são componentes do dia a dia de muita batalha para quem precisa sustentar a família e sobreviver em meio ao caos. O apagão ocorrido no dia 03 de novembro de 2020 evidenciou a desigualdade latente, enxergada por poucos, sobre como de fato vivem as pessoas que mais precisam de assistência.

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, aproximadamente 10% das residências brasileiras não contavam com abastecimento de água diariamente, afetando um número estimado de 18,4 milhões de brasileiros. Na região Norte, apenas 57,05% da população é abastecida com água tratada, e 55,53% da água potável é perdida, ou seja, quase a mesma quantidade equivalente ao abastecimento, segundo informações do Instituto Trata Brasil.

Em relação à energia elétrica, números levantados no último censo demográfico do IBGE, a população considerada sem acesso à energia ultrapassava dois milhões de brasileiros. Um estudo organizado em 2019 pelo Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IEMA), concluiu que de 2011 a 2017, por meio do Programa Luz para todos – atualmente Programa de Universalização de Energia -, a energia elétrica chegou a quase 800 mil pessoas. Mas ainda assim, o número de pessoas sem acesso a esse recurso básico é muito alto.

Juliana e o pai, Luis Carlos, usam água da chuva para sobreviver. Foto: João Teles

“A gente levantava rápido quando ouvia a chuva caindo para colocar o balde e aparar. Não veio racionamento de nada. A gente só sabe as informações quando vem gente da cidade aqui, até os telefones não funcionam”, diz Juliana Lima, comerciante e moradora da comunidade de Ressaca da Pedreira.

Na banca de frutas no meio da estrada, Juliana e outros moradores da comunidade tentam vender o pouco que ainda resta de bom para consumir. Peixes e alguns alimentos perecíveis que permitiam o salgue, foram conservados, todo o resto foi perdido. Sem acesso à energia, serviços como o de telefonia, internet e até mesmo o da saúde, ficam comprometidos.

“Sexta, sábado e domingo”. Na loteria do clima, apenas 3 dias foram sorteados para que Juliana e sua família pudessem utilizar a água da chuva, que ainda assim, não é própria para consumo. O biólogo Gabriel Marinho, formado pela Faculdade de Macapá (FAMA), explica que essa água não pode ser consumida por conta da poluição do ar.

“Muita gente pensa que quando pegamos a água que escorre pela calha ou biqueira, o líquido não pode ser consumido por conta da sujeira dessas partes, de fato, não podemos beber, mas as pessoas associam isso à calha, mas não é assim. Se pegarmos a ‘pura’ água da chuva, caindo do céu direto no balde, ela continua não sendo potável, já que precisamos levar em consideração que o nosso ar é poluído, principalmente em áreas urbanas, onde ele é composto de várias partículas poluentes, e quando em contato com a água, faz com que ela se torne prejudicial à saúde”, afirma.

Durante a queima de combustíveis, vários gases e componentes tóxicos são liberados, inclusive o benzeno, substância altamente cancerígena. A longo prazo, o consumo dessa água pode desencadear doenças crônicas como hipertensão e doenças cardíacas. “Quando a água da chuva entra em contato com esses gases ela vira chuva ácida, e de acordo com a quantidade de indústrias e fábricas presentes na região, ela pode apresentar excesso de sódio e potássio, por conta da poluição do ambiente, levando ao desenvolvimento de doenças sérias”, conclui o biólogo.

A fé alimenta a esperança. Foto: João Teles

Hábitos difíceis de mudar

Para quem já se acostumou a viver na escuridão, os dias sem energia são apenas dias comuns. “Ah, minha filha, já nem sei há quanto tempo… por aqui sempre foi assim. De noite já virou hábito nosso sentar aqui na frente. Quando não tem esse apagão geralmente a energia sempre vai embora, passamos 24h assim. E agora estamos há 1 semana sem…”. Aos 79 anos, Amiraldo Campos da Silva é um dos brasileiros que padece no calor, sob a chama da vela e da nuvem de mosquitos.

O desgosto pela atual situação política foi unanimidade entre os entrevistados desta reportagem. Para alguns, que não abrem mão de votar, esse é um momento importante para tentar mudar a dura realidade de quem vive por ali. Para quem prefere se abster, vencidos pelo cansaço de uma situação que não muda, o domingo de eleição já deixou de ser ‘a festa da democracia’ há bastante tempo.

“Esse momento tá sendo muito difícil para a gente, ainda mais com as crianças. Tá empatada a venda da gente, porque não vendemos só fruta, vendemos outras coisas que também dependem de água”, diz Maria de Fátima Barcelar Padilha.

O microfone não intimida quem tem pressa em contar sua história. “Outras pessoas que estiveram lá chamaram até a gente de macaco”. No domingo que antecedeu a visita da repórter à Comunidade quilombola de Casa Grande, uma manifestação foi organizada pelos moradores, encerrada pela força e brutalidade policial e pela falta de compreensão de quem passava por ali e não se identificava com a luta.

Protesto de moradores da comunidade quilombola Casa Grande termina com violência policial. Foto: Dayane Oliveira

“Nós fechamos a via e claro que eles acharam ruim, mas nós estamos lutando pelos nossos direitos (…) o rapaz da polícia falou ali que o prefeito mandou foi o Bope para cá, o que deu de polícia não foi filmado… Nós só ‘tava’ pedindo a ajuda da CEA, nós não ‘tava’ querendo brigar, acho que a polícia do estado do Amapá inteiro deu toda aqui na Casa Grande de noite”, afirma Maria de Jesus, proprietária de uma batedeira de açaí na comunidade. O cenário vivido no Amapá começa a se aproximar de momentos retratados em filmes de apocalipse, a única chama que queima, além das fogueiras em sinal de protesto, é a da revolta.

Encerrando as visitas, com tristeza e a sensação de impotência por não poder fazer mais, nos despedimos de todos sem contato físico, cortesia dos tempos difíceis da pandemia. “Boa sorte, viu?”. Como resposta, um olhar perdido de quem ainda busca uma luz na escuridão. “Boa sorte também”.