Foto: Dsei Yanomami

Dentre tantas lutas urgentes como a demarcação de território e resistência frente à invasão de suas terras, os povos indígenas ainda têm de enfrentar a desassistência na área da saúde.

Em meio à pandemia, têm sido vítimas do aparelhamento político dos Distritos de Saúde Especial Indígena (Dseis) – que deveriam atuar pela proteção das comunidades – e do maior corte orçamentário para a saúde indígena nos últimos oito anos. Os gastos executados em 2020 representam queda de 13% em relação ao de 2019, segundo um levantamento feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

Em uma investigação, o Repórter Brasil apurou trocas de comandos nos 34 Dseis do país e quais os impactos causados às comunidades. Em pelo menos quatro deles houve indicações de militares ou políticos, pessoas inexperientes, que agem com truculência na interação com as comunidades ou que não entendem de gestão, trazendo danos às comunidades, alerta a ONG. Três das quatro mudanças ocorreram durante o Governo Bolsonaro.

Foto: Ascom/CTI

No Amazonas, a falta de compromisso com as causas indígenas resultou na morte de Amado Menezes, liderança indígena da etnia sateré-mawé. Resistiu o quanto pôde pela manutenção da barreira sanitária montada na entrada da aldeia, mas a coordenação do Dsei Parintins retirou seu apoio e ela foi interrompida. Amado foi contaminado e morreu em decorrência da Covid-19.

Esse é o reflexo de cargos ocupados por profissionais sem qualquer especialização na saúde indígena ou tampouco noção de gestão na área da saúde.

Mesmo que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) preveja que os indígenas devam ser incluídos no processo de escolha dos coordenadores dos Dseis, eles não costumam ser consultados sobre quem vai atuar em seus territórios.

Além de barreiras sanitárias removidas, reportagem da Repórter Brasil denuncia que entre os casos mais graves, um coordenador trabalha armado intimidando indígenas, desvio de verbas para o combate à pandemia e suspeita de distribuição, para as aldeias, de cloroquina – medicamento comprovadamente sem eficácia para combater o vírus. A propósito, a própria aeronáutica assumiu ter feito o transporte de caixas de cloroquina para comunidades em regiões isoladas, a pedido do Ministério da Saúde.

Confira o resultado da apuração em quatro Dseis:

  • Dsei Leste (Roraima): distribuição de cloroquina

Em meio à pandemia e em um período de 1 ano e 8 meses foram feitas cinco trocas de coordenação. Segundo a reportagem, este é um dos exemplos mais explícitos do aparelhamento por militares e indicados políticos. O capitão do Exército Tárcio Alexandre Pimentel, que assumiu a coordenação do Dsei em maio de 2020, está sendo investigado pelo Ministério Público Federal de Roraima por ter distribuído cloroquina às comunidades indígenas.

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Famoso por ter sido pego com R$ 33 mil na cueca em outubro do ano passado, o senador Chico Rodrigues (DEM-RR) é apontado como “padrinho político” do Dsei, ou seja, quem mais indicou coordenadores para este distrito.

Ele está sendo investigado pela Polícia Federal e pelo Tribunal de Contas da União por fornecer equipamentos de combate à Covid-19 superfaturados ao Dsei, favorecendo empresas comandadas por familiares e aliados. Mas mesmo os escândalos não neutralizaram seu poder, tanto que ele teria escolhido outro coordenador: Charles Barbosa Mendes.

O coordenador do Conselho Indigenista Missionário Norte, Luís Ventura Fernandes disse à reportagem que entre 2019 e 2020, as indicações eram de políticos ligados a parlamentares e senadores. Depois passaram a ser de militares e depois, novamente indicações feitas por políticos.

  • Dsei Parintins (AM): ausência de barreira sanitária aumenta casos de Covid 

Assim que foram chegando notícias da pandemia, as lideranças da terra indígena Andirá Marau – que abrange os municípios de Barreirinha, Maués e Parintins, no Amazonas – decidiram montar uma barreira sanitária no rio Andirá.

Foto: Gilson Almeida

Ao controlar o fluxo de quem entrava no território, diminuiria o risco de o vírus também entrar. Tudo ia bem até que a chefia do Dsei Parintins decidiu tirar a barreira.

De acordo com o advogado sateré-mawé, Tito Menezes – que é sobrinho de Amado (citado no início da matéria), a barreira foi montada com apoio do Dsei, mas logo foi retirado todo apoio logístico como barcos, lanchas, combustível, alimentação, EPIs e funcionários.

“A alegação foi a de que o tráfico de drogas na região estaria ameaçando a equipe na barreira de Mawés”, relatou à Repórter Brasil.

  • Dsei Yanomami: major armado e falha na vacinação

Outro militar indicado durante a gestão de Bolsonaro também vem sendo alvo de críticas por parte dos indígenas. Trata-se do major do Exército Francisco Dias Nascimento Filho, nomeado em julho de 2019, para coordenar o Dsei Yanomami. De acordo com relatos de indígenas e dos próprios empregados do Dsei, Nascimento ia armado para o distrito e intimidava funcionários e representantes do movimento indígena.

O antropólogo do Instituto Socioambiental (ISA), Moreno Saraiva, disse à equipe da ONG que Francisco não tem conhecimento da área da saúde e muito menos de atendimento a povos de recente contato em áreas isoladas da Amazônia.

Ele foi exonerado, mas quem assumiu em julho de 2020 foi Rômulo Pinheiro Freitas. Sua gestão também vem sendo alvo de críticas, por falta de transparência e falhas na aplicação de vacinas.

O Ministério Público Federal apura denúncia feita pela Hutukara Associação Yanomami , além de problemas no planejamento e execução da vacinação pelo Dsei, não foi feita a licitação da hora-voo de helicópteros para transportar equipes de saúde e pacientes graves. Os voos estão funcionando por meio de contratos emergenciais, e por isso não dão conta da demanda.

A associação também denuncia tentativas de desvio de doses de vacina. Em março, a Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa de Roraima solicitou a redistribuição de vacinas destinadas aos indígenas para a imunização da população do estado.

Procurado pela reportagem, Freitas, o atual coordenador, solicitou que as perguntas fossem enviadas à Sesai, que não retornou a solicitação. O Exército afirmou que “trata-se, em ambos os casos [nos Dseis Leste e Yanomami], de militares da reserva”. E que “a Força não realizou qualquer indicação ou proposta institucional de militares da ativa ou da reserva para ocupar os cargos constantes da demanda apresentada”.

  • Dsei Manaus: gestores sem experiência

 O atual coordenador do distrito é Januário Neto, que assumiu em outubro de 2020, por indicação política. Neto é próximo do senador Eduardo Braga (MDB/AM).

A Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno conta que muitas pessoas são demitidas se discordam da política centralizadora do novo gestor e isso refletiu na administração: faltam combustível e recursos para pagar aluguel de barcos, por exemplo. Para os indígenas atendidos pelo Dsei falta diálogo com as comunidades.

 

A reportagem da Repórter Brasil foi produzida pela jornalista Tatiana Merlino, com o apoio do Pulitzer Center em parceria com o Rainforest Journalism Fund.