Foto: Mídia NINJA

Autor de um levantamento sobre o impacto do crime organizado nas comunidades indígenas no Brasil, o procurador do Ministério Público Federal em Mato Grosso (MPF/MT), Ricardo Pael afirma que a invisibilidade dos povos originários facilita o avanço da violência. Principalmente na Amazônia Legal, onde se encontra a maior parte das terras indígenas (59%).

O estudo aponta que o crime organizado se esconde atrás de crimes ambientais, como exploração ilegal de madeira e garimpo e disfarçado de conflito fundiário, ou seja, grilagem e homicídios, “ou é simplesmente ignorado pelas Forças de Segurança Pública (tráfico de drogas e de pessoas)”, diz Pael.

“As ações de grupos criminosos no interior de terras indígenas, independentemente do crime praticado, tiram a paz desses povos”.

Segundo o procurador, a violência dos grupos de narcotraficantes que se instala nos aglomerados de garimpeiros ou a constante ameaça de perda do território para grileiros ou madeireiros, e ainda o medo de ver os criminosos sugarem tudo da terra, poluírem seus rios e inviabilizarem por completo seu modo de vida tradicional mantêm os povos indígenas em alerta integral. “Tudo isso coloca, há tempos, os povos indígenas em constante estado de vigilância”.

O estudo realizado no Brasil a pedido do programa EL PAcCTO (Europa/Latino America – Programa de Assistência contra o Crime Transnacional Organizado) possui originalmente três eixos de trabalho, que são o judicial, penitenciário e policial. Porém, de maneira inédita viu-se a urgência da criação de um quarto eixo, voltado para os Direitos Humanos e Comunidades Tradicionais.

Com o objetivo de também fornecer informações para a criação de política públicas para o enfrentamento do problema, se torna evidente a necessidade de uma legislação diferenciada, afirma o procurador, que também é membro do Ofício de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais na Procuradoria da República em Mato Grosso (PRMT).

“Não existe nenhuma lei penal no Brasil que torna a pena do crime mais grave pelo fato de a vítima ser indígena ou de ter sido praticado em terra indígena; mesmo nos crimes ambientais, onde os danos são mais graves. Além disso, quando há operação, ressalto, ‘quando há operação’ de combate ao crime organizado em terras indígenas, a ação é feita de forma indiscriminada, contra todos e não contra os pontualmente envolvidos, o que gera preconceito e estigmatização.

Uma liderança indígena do nordeste brasileiro relatou que a sociedade no entorno dos territórios se refere à maconha que circula nas cidades como a ‘maconha dos índios’, muito embora a droga seja produzida no interior de terras indígenas sem autorização das comunidades”, observou.

O procurador da República alerta que a operação destrói a plantação, interrompe a prática criminosa, mas “o Estado Brasileiro se retira e deixa os indígenas com todo o dano causado pela organização criminosa, a devastação ambiental e a desestruturação social”.

Mulheres: as mais invisíveis entre os invisíveis

Mulheres são apagadas de relatórios sobre o crime organizados: “as mais invisíveis, dentre os invisíveis” (Foto: Mídia Ninja)

Dentre os mais invisíveis, destaca o estudo, estão as mulheres indígenas. “Quando investigamos quem são os colaboradores do crime organizado dentre os indígenas, são todos homens, não se identificou mulheres colaborando, participando do crime organizado”.

E quando o foco é identificar as vítimas, elas também não aparecem. “Porque as vítimas são tratadas coletivamente, vítima do crime organizado é a comunidade indígena. E onde estão as mulheres? São elas as principais lutadoras, as principais vozes das comunidades indígenas na luta por direitos, mas são apagadas nos relatórios sobre o crime organizado. São as mais invisíveis entre os invisíveis”, alertou o procurador Pael.

Ineditismo

Procurador aponta aumento de movimentação de criminosos entre o narcotráfico e a mineração ilegal (Foto divulgação MPF)

O procurador acredita que esta seja uma pesquisa inédita no país, principalmente pela dificuldade encontrada de reunir informações, pois, muito embora haja uma quantidade significativa de dados sobre crime organizado e relatórios de violência contra comunidades indígenas, não há trabalhos que façam a relação entre os dados.

“Muitas operações da Polícia Federal de combate à exploração ilegal de madeira, à mineração ilegal ou mesmo ao narcotráfico, passando dentro de terras indígenas, não correlacionam os crimes com as comunidades em si. Esse vínculo, essa sistematização, essa correlação, é o que faltava. Um dado relevante, a título de exemplo, é que muitas organizações criminosas fazem movimento pendular entre o narcotráfico e a mineração ilegal no interior de terras indígenas, por incrível que pareça. O ouro teve um aumento tão grande nos últimos anos que as organizações criminosas perceberam que em alguns lugares é mais lucrativo investir na mineração ilegal do que no próprio tráfico”, ressaltou Pael.

Crimes ambientais e delitos transversais

Todas as atividades ilícitas praticadas no interior das Terras Indígenas são precedidas de desmatamento (Katie Maehler / Mídia NINJA)

As atividades que mais afetam as comunidades indígenas são os crimes ambientais, como a exploração ilegal de madeira. Aliás, todos as atividades ilícitas praticadas no interior das Terras Indígenas são precedidas de desmatamento e, na verdade, envolvem vários crimes diferentes, como estelionato, falsidade, extorsão, ameaça, furto de madeira, receptação, corrupção e lavagem de dinheiro, além do próprio crime de organização criminosa ou associação criminosa, que não são crimes ambientais.

Concomitante ao desmatamento, a mineração ilegal ou garimpo talvez seja o crime que mais danos cause às comunidades indígenas, devido aos devastadores impactos ambientais.

“Além dos efeitos prejudiciais de qualquer atividade criminosa inserida no meio cultural tradicional indígena, o garimpo traz consigo um meio de vida perverso e perigoso, marcado pela violência e pela disseminação de doenças, além de uma intensa contaminação dos rios e de um processo de desmatamento bastante agressivo”, ressaltou o procurador no relatório.

Assim como no caso da exploração ilegal de madeira, outros crimes também foram identificados no entorno do garimpo, propriamente dito, como a destruição de floresta considerada de preservação permanente, o dano direto ou indireto a Unidades de Conservação, o desmatamento e a poluição hídrica. O garimpo também se mostra associado a outros crimes não ambientais, além do crime de organização criminosa, como falsidade, receptação, corrupção, lavagem de dinheiro e tráfico de drogas.

Usurpação do território

A usurpação dos territórios indígenas, tanto aqueles já reconhecidos administrativamente quanto aqueles em processo de reconhecimento, também está no rol dos crimes que atingem as comunidades indígenas, e são popularmente conhecidos como grilagens, que, de certa forma, estão associados aos crimes ambientais.

As disputas territoriais também são acompanhadas de outros crimes, como a formação de milícias rurais armadas e todo tipo de violência que elas praticam, desde o constrangimento ilegal até homicídio.

“Não bastasse tudo isso, o atual cenário político tem tornado os territórios indígenas ainda mais vulneráveis, impulsionando sua ocupação e exploração irregular. Com efeito, a Funai editou, recentemente, a Instrução Normativa nº 09/2020 que autoriza a expedição de certificações ambientais e fundiárias para imóveis sobrepostos a territórios indígenas que não tenham tido seu processo de demarcação concluído. Tal medida tem instigado a ocupação ilegal de Terras Indígenas, inclusive por meio de violência”, enfatizou Pael.

Narcotráfico e tráfico de pessoas

A pesquisa sobre os efeitos do narcotráfico nas comunidades indígenas se tornou mais difícil que dos demais crimes, por falta de informações. Apesar do Relatório Mundial sobre Drogas (2020) da UNODC (United Nations Office on Drugs and Crime) apontar que os estados de Mato Grosso (para cocaína) e Mato Grosso do Sul (maconha), são as principais portas de entrada de drogas no Brasil, não há informações que relacionem o narcotráfico e comunidades indígenas nessas regiões, mesmo Mato Grosso Sul sendo o segundo em população indígena no país e tendo vários territórios indígenas na região da fronteira com o Paraguai.

As informações coletadas sobre o narcotráfico junto às comunidades indígenas foram encontradas em reportagens e em um laudo antropológico produzido por antropólogo do MPF sobre os índios Tikuna, no Amazonas, além dos depoimentos de lideranças indígenas coletados pela antropóloga Jane Beltrão, da Universidade Federal do Pará.

Ocorrências de tráfico de pessoas envolvendo indígenas também têm sido noticiadas. Recentemente, informações dão conta de que crimes desse tipo ocorrem na fronteira do Brasil com a Bolívia, tendo como vítimas indígenas Chiquitanos, da Terra Indígena Portal do Encantado, no município de Porto Esperidião, Pontes e Lacerda e Vila Bela da Santíssima Trindade, em Mato Grosso. Já na fronteira do Brasil com o Paraguai foi constituída, em 2019, uma Equipe Conjunta de Investigação sobre o tema.

Cooperação internacional

O EL PAcCTO (Europe Latin America Programme of Assistance against Transnational Organized Crime) é um programa de cooperação internacional financiado pela União Europeia que busca contribuir para a segurança e justiça na América Latina por meio do apoio à luta contra o crime organizado transnacional.

Pael foi convidado em razão de sua atuação na Força Tarefa Avá Guarani, na Procuradoria da República no Município de Ponta Porã, no Estado de Mato Grosso do Sul, bem como por ter coordenado um Grupo de Trabalho sobre Cooperação Internacional Transfronteiriça da Reunião Especializada de Ministérios Públicos do Mercosul – REMP, além da atuação com temática indígena desde que chegou em Cuiabá.

Para a realização da pesquisa,  teve apoio da também procuradora da República, coordenadora da Força Tarefa Amazônia, Ana Carolina Bragança; da antropóloga da Universidade Federal do Pará, Jane Beltrão, da doutora do Instituto Igarapé, Melina Risso; além de autoridades, lideranças indígenas e de instituições como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

Acesse a íntegra do estudo clicando aqui.