Foto: Arquivo Pessoal

Um projeto em tramitação na Câmara Federal quer reduzir 22 mil hectares da Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre, favorecendo que sobre essa área, avance a agricultura e pecuária, o que na prática, tira a razão de ser da unidade ambiental. A simples notícia de sua tramitação tem estimulado a invasão e venda de lotes, que é ilegal.

O Projeto de Lei nº 6024/19, de autoria da deputada Mara Rocha (PSDB-AC) também quer rebaixar o Parque Nacional da Serra do Divisor a uma Área de Proteção Ambiental. Ao defende-lo a deputada justificou que com a mudança, continuaria a ser preservado e ao mesmo tempo, explorado.

Ela vê a proteção integral como empecilho à exploração econômica das riquezas ali presentes. E usa como desculpa para reclassificação, a construção de um trecho da rodovia BR-364 que chegará até o Peru, mas a obra já estava prevista desde a institucionalização do parque.

A ativista ambiental Angela Mendes, tem acompanhado de perto a tramitação do projeto que aguarda parecer do relator na Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia (Cindra), o deputado José Ricardo (PT-AM). Ela é filha de Chico Mendes e mantém o legado do ambientalista que defendia a preservação da floresta e das seringueiras nativas com fins de subsistência.

“Na prática, não era necessário a mudança de Parque para APA. Bastaria seguir as condicionantes estipuladas respeitando as salvaguardas e principalmente o direito à consulta aos povos indígenas que serão impactados com a construção dessa estrada. Essa justificativa não cola. Eles dizem que beneficiaria o Acre como um todo, mas ao invés de fazer o novo trecho, deveriam era melhorar outros perímetros até Cruzeiro do Sul. Todo inverno tem de ser feita manutenção”.

Notícias falsas estimulam ilegalidade

Da perspectiva da Resex, ela conta que enquanto o projeto tramita, a disseminação de fake news se tornou um problema para quem vive na área, pois elas estimulam a venda de lotes dentro da reserva. “Tudo com base na tramitação desse PL que incentiva o loteamento e desmatamento na reserva. Já fomos informados de vendas ilegais de lotes em Brasileia impulsionados pela crença de que será aprovado”, conta.

Para Angela, essa é uma maneira de descaracterizar a finalidade da reserva para depois, extingui-la. “Aí eles dirão: ‘ah, a Resex perdeu o sentido. As pessoas estão desmatando, criando gado, então vamos acabar com ela’. Faz parte de um alinhamento político, um planejamento porque essa reserva traz um simbolismo muito grande [da luta do pai, Chico]”.

A ativista conta que nos últimos anos, marcados pelo afrouxamento das leis ambientais e desmantelamento e enfraquecimento dos órgãos de fiscalização, os problemas se multiplicaram.

“Mas vale ressaltar, são investidas de parlamentares de extrema direita. Infelizmente a figura do ministro [Ricardo Salles] que é a figura que representa nacionalmente a política do meio ambiente, de valorização do meio ambiente,  das populações tradicionais, tem essa concepção de que é um atrapalho para o agronegócio, tanto é que faz sempre a defesa do agronegócio em detrimento do meio ambiente, dos povos da floresta e seus territórios”.

O descaso do Governo Federal em fiscalizar e punir, segundo ela, é um agravante e prejudica a conservação da unidade de proteção ambiental. “Deve haver uns quatro funcionários do ICMBio para cuidar de quase 1 milhão de hectares. Estes, por sua vez, pouco podem fazer diante da necessidade de obedecer ao regramento de militares”.

Facções criminosas na Resex

A ausência do Estado brasileiro, que não age pela proteção dos territórios, abre caminho para a atuação de facções criminosas que a têm usado como acesso para tráfico de drogas e armamento. “Não tem fiscalização e PF só age se for provocada”. O Ministério Público Federal (MPF) do Acre já foi informado sobre a presença de facções que operam no tráfico de drogas e armas, da invasão desenfreada e ainda, de casos de comunidades tradicionais prejudicadas por pulverização de agrotóxicos.

“Temos conhecimento de lideranças que foram expulsas de suas casas e correm risco de morte se voltarem para a área. Informações sobre ameaças e violência contra extrativistas estão aumentando”.

O PL será analisado ainda pelas comissões de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural e de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável até chegar à Constituição de Justiça e de Cidadania, sob a condução de Bia Kicis (PSL-DF). E vale ressaltar, o projeto tramita com certa celeridade assim como o PL da Grilagem e do Não-Licenciamento Ambiental. “Eles aproveitam a pandemia. Enquanto lideranças estão se protegendo, os ilegais estão à solta”.

PL não foca nas comunidades

Se invasões ilegais não forem contidas, a floresta preservada dará lugar a cenário de destruição (MarizildaCruppe/Greenpeace)

Sobre a iniciativa legislativa de Mara Rocha, consolidada com o apoio do agropecuarista e senador Márcio Bittar (PSDB-AC) e que propõe reduzir 22 mil hectares nos municípios de Brasileia e Epitaciolândia, Angela explica que o argumento utilizado para as iniciativas legislativas em âmbito estadual e federal que têm como objetivo diminuir ou até extinguir áreas de proteção ambiental é como se elas fossem entraves ao desenvolvimento econômico.

Para ela, os parlamentares não veem porque não querem, que áreas protegidas têm potencial econômico. A extração da castanha, por exemplo, poderia potencializar o PIB nacional se houvessem estratégias e investimento para fortalecer o segmento extrativista. A floresta ficaria em pé, e as comunidades teriam segurança financeira.

“A deputada fala sobre benefícios a essas populações, mas até agora não soube explicar quais são. Ela afirma que criadores de gado e produtores rurais estavam lá desde antes da demarcação da reserva, mas essas pessoas não têm o perfil dos moradores da reserva extrativista”.

A reserva de 970.570 hectares criada em 1990 vem sendo “devorada” pouco a pouco. Segundo Angela, calcula-se que 3.500 famílias vivem na Resex. O último levantamento, de 2009, apontou a presença de 1.800 famílias, mas esse número hoje é muito maior diante de frequentes invasões.

“Em 2019 o MPF acionou o ICMBio para que fizesse um novo levantamento, gastou dinheiro, recurso público, no entanto até hoje os dados não são conhecidos. Nunca foram disponibilizados para população. Acreditamos que não foi aberto ao público para não mostrar o tanto de moradores ilegais que estão hoje ocupando a Resex. E o objetivo do PL já sabemos, é o de regularizar áreas e apoiar famílias de invasores, legitimando quem ocupa ilegalmente”, aponta.

Segundo Ângela, alguns casos de ocupações irregulares tiveram que ser levados à Justiça para que pessoas fossem retiradas da Resex. “O PL vem à tona para incentivar mais invasões e degradação. Mara Rocha insiste que moradores da Resex estariam passando até fome como apelo à opinião pública. Mas o objetivo é um só: desmatar de forma precisa e agressiva, usando correntões e máquinas que arrastam tudo que estiver na frente”.

Cultura de subsistência

Extrativistas querem viver na floresta, usufruindo dos seus recursos sem destruí-la (Katie Maehler / Mídia NINJA)

Ela testemunha que os extrativistas estão satisfeitos com a vida que têm. “O que a gente deseja é que sejam aprimoradas políticas públicas pela vida. Dentro dos princípios do bem viver para que possamos seguir com nossos modos tradicionais de vida. Infelizmente meu pai morreu por defender isso”. Chico Mendes foi morto a tiros em 1988, no município de Xapuri, interior do Acre.

Angela afirma que os extrativistas querem que seja reconhecida a importância da cultura e história deles para manutenção do equilíbrio do meio ambiente, para a plantação, mas claro, a partir de formas tradicionais de cultivo do solo, a pequena cultura de subsistência.

“Muitos têm burlado a lei, vendendo lotes, porque não recebem qualquer estímulo do governo, sem chances de acessar políticas públicas ou financiamento bancário. É aí que acabam vendendo seus lotes para pessoas que não tem o perfil da Resex. Pessoas que ou passam para frente, ou usam para lazer no fim de semana e arrendam parte para formação de pasto e criação e gado. Fica bom para os dois lados, mas ruim para a Resex”.

Luz de Chico

Chico Mendes morreu por defender modelo extrativista que conservasse a floresta (Licença Creative Commons)

Questionada sobre qual seria a postura do pai em tempos tão sombrios, Angela se baseia pela postura combativa de Chico Mendes. “Não dá para falar em nome dele, mas pelas posições que ele tinha, logicamente, ele estaria tentando de alguma forma reverter essa situação, calado ele não estaria, era uma pessoa de uma mente tão criativa, tão criativa a ponto de se pensar coisas que não se pensava na época, ele teria alguma saída que ele a gente não está vendo”.

Angela lembra da fala do amigo de Chico Mendes, o advogado Gumercindo Rodrigues. “O Guma passou os últimos anos do meu pai do lado dele. E ele sempre fala: ‘Chico morto fez muito, mas vivo faria muito mais’. Levando em consideração as ideias avançadíssimas e sua mente brilhante. Que ele nos ilumine e nos guie”.

A ativista seguirá na resistência. “Os tempos são outros, os ataques são tantos, quando a gente começa a achar que está achando um caminho por aqui vem um trator com novos problemas. E ainda tem a pandemia, é um turbilhão. A gente tem é que colocar a cabeça para funcionar e ir resolvendo tudo no seu tempo devido”.