Foto: Bruno Jorge

Os povos originários do Brasil são foco de um grupo muito persistente que deseja retirar seus direitos e expulsá-los de suas terras com um único objetivo: explorar recursos naturais. Como eles salvaguardam a biodiversidade, se tornaram um entrave ao projeto de desenvolvimento econômico defendido por Jair Bolsonaro.

Mesmo fragilizados por constantes ataques, não há outra saída aos indígenas, senão, resistir. De um lado, o órgão que deveria protege-los, a Funai, insiste em medidas infralegais que visam enfraquecer ou retirar direitos.

De outro, estão projetos de leis que ameaçam sua sobrevivência, como o PL 490/2009, em pauta na Comissão de Justiça e Cidadania da Câmara Federal, presidida por apoiadora das mais fervorosas de Jair Bolsonaro, a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF). Se aprovado, vai para votação no plenário.

O PL permite que o governo tire da posse de povos indígenas áreas oficializadas há décadas, escancara as Terras Indígenas (TIs) a empreendimentos predatórios, como o garimpo, e, na prática, vai inviabilizar as demarcações, totalmente paralisadas pelo governo Bolsonaro. Certamente que o assunto da semana é a demarcação de terras indígenas.

E no meio de tudo isso, ainda há uma grande decisão a ser tomada pelo Superior Tribunal Federal (STF) em um julgamento que pode impactar o futuro dessas comunidades: o Marco Temporal está sob debate.

Prejuízos à pauta das demarcações

O procurador da República, titular do Ofício de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais em Mato Grosso, Ricardo Pael Ardenghi relembra que quando candidato, Jair Bolsonaro dizia que em seu governo não haveria “um centímetro de demarcação de terra indígena”. Mas foi muito pior do que o anunciado, na opinião de Pael.

“Com tanto retrocesso havia ainda a hipótese de des-demarcações. Percebendo que não seria possível ou mais difícil, buscou fragilizar proteções a terras indígenas ou entrega-las à exploração de não-índios deixando os indígenas extremamente vulneráveis na proteção de seus territórios”.

E alerta: “dentro desse grupo, os isolados são os mais vulneráveis dentre os vulneráveis”.

Pael explica que, por manter isolamento voluntário e não participarem de articulação com outros povos ou entidades não-governamentais, tampouco se comunicarem usando celulares ou computadores, eles estão ainda mais fragilizados.

“Em Rondônia, no Sul do Amazonas você tem guardiões da floresta que encontram invasores ilegais e ligam para a PF buscar. Os yanomami têm resistido ao garimpo. Mas os isolados, não têm essa iniciativa. Seja por impossibilidade de resistir, seja por medo do contato. Afinal, com um sistema imunológico mais frágil, ficam muito mais suscetíveis a doenças”.

Soma ainda as dificuldades de comunicação. “Alguns ainda podem contar com um ou outro intérprete que buscou contato externo e faz essa ponte e outros, que conseguem se comunicar porque falam língua de mesmo tronco”. Mas há casos em que a comunicação se dá apenas por gestos.

O procurador está preocupado com um plano em curso pelo governo Bolsonaro, que é o de acabar com as portarias de restrição de uso, que impede a exploração de terras de povos isolados.

Ele mesmo tem travado uma batalha judicial para garantir a proteção aos últimos dois sobreviventes do povo Piripkura.

“A necessidade urgente de proteção não pode esperar por um processo moroso até a homologação da terra indígena. A restrição de uso é uma normativa que garante proteção enquanto a demarcação não se consolida”.

Mas, assim como os Piripkura, outros seis povos indígenas isolados seguem reféns de constantes renovações de portarias que duram apenas o período de dois anos. A dos Piripkura é a primeira a vencer, em setembro deste ano. Mesmo caso dos Pirititi, de Roraima e Katawixi (Amazonas), cujas proteções expiram em 5 e 8 de dezembro, respectivamente.

Proteção da Terra Indígena Pirititi, ao Sul de Roraima vence em dezembro deste ano (Divulgação Ibama)

Outros povos isolados que vivem sob vigência da normativa que restringe o uso de suas terras são os Ituna Itatá (Pará), Igarapé Taboca do Alto Tarauacá (Acre) e Kawahiva do Rio Pardo (Mato Grosso). Para estes dois últimos povos, a normativa expira na homologação da demarcação.

O que o deixa angustiado são os claros sinais de que a Funai não se empenhará. “Só a expectativa já tem feito com que a área seja a mais devastada”. Junto às invasões ilegais, vêm também o desmatamento.

O procurador ingressou com uma Ação Civil Pública na Justiça Federal pedindo que a Funai prorrogue a restrição de uso com urgência e outra ação para que haja reintegração de posse, ou seja, para retirada de invasores. Como a União e Funai tem até 6 de julho para cumprirem a decisão, até agora nada foi feito. “O juiz determinou que sejam tomadas medidas de proteção, que é o pedido original da ACP. Mas, antes disso, eu já tinha formulado o pedido de prorrogação da portaria, que foi ignorado. Reiterei depois e até agora nada”.

Por meio da assessoria, o titula da Vara Cível e Criminal de Juína, Frederico Pereira Martins, informou que o processo está sob análise e que “tem prazo em aberto para a União”. E ainda, que “está agendando data para a realização da audiência”.

“Tudo isso faz parte de um projeto que tem nos tirado o sono. Todo dia é uma Ação Civil Pública. Ações contra a Funai que tem encabeçado políticas anti-indigenistas como a Instrução Normativa nº 09, de abril de 2020 que liberou imóveis rurais dentro de TIs não-homologadas. Normativa suspensa em metade do país”.

À ocasião, relembra, tramitava na Assembleia Legislativa de Mato Grosso um PL que autorizava emissão de cadastro ambiental rural em TIs Não-homologadas e em nível federal, PL da Grilagem que amplia o projeto de regularização fundiária de imóveis ilegais.

“E tem ainda a normativa da heteroidentificação que quer deixar na mão do governo decidir quem é indígena ou não. São atos administrativos concatenados na mesma política indigenista de limitação de direitos”, desabafa.

“E como a Funai não tem conseguido passar a boiada com atos administrativos, o movimento chega no congresso com mais força”.

Território compartilhado

O indígena Beto Marubo, mebro da Organização Indígena UNIVAJA – A União dos Povos Indígenas do Vale do Javari que, dentre seus objetivos, luta pela proteção de 16 grupos isolados no Vale do Javari, no Amazonas, aponta que no Brasil podem haver 114 povos isolados. Ele explica que a metodologia empregada no levantamento, a mesma utilizada pela Funai, leva em consideração referência, referência confirmadas e informações. Ou seja, quando o trâmite de confirmação não foi concluído; quando houve conclusão e constatação e qualquer informação sobre a existência ou presença ainda não confirmada, mas que conta na base de dados da Funai. Por esse motivo, em algumas situações, mesmo que habitem territórios por séculos, não há ao menos conhecimento de nomes de nação ou mesmo, a qual tronco linguístico pertencem.

Beto acompanha de perto os 16 povos isolados do Vale do Javari, território com 8,5 milhões de hectares. Destes, 10 são confirmados. A TI concentra a maior quantidade de povos isolados do mundo, que se tem conhecimento. “Compartilhamos o território, mas eles estão totalmente alheios à realidade que vivemos. O que notamos é que houve um aumento populacional desses povos graças à política do não-contato”. Ou seja, se forem expostos às invasões, não há esperança de novas gerações.

“Precisamos nos unir enquanto sociedade civil, organizações ambientalistas e de defesa indígena, porque muita gente se incomoda com o fato de indígenas andarem livres em seus territórios. A Funai não está nem um pouco preocupada com indígena. É um órgão que defende o agronegócio governada por fundamentalismo evangélico. Como o Governo Federal”.

E agora, nesta semana, os indígenas estão em estado de alerta para pautas do Congresso e STF. Caso iniciativas sigam adiante, Marubo, que trabalha com povos isolados desde 2003, ressalta: “os isolados vão sofrer ainda mais, são extremamente vulneráveis”.

PL Inconstitucional

O procurador Ricardo Pael vê o PL 490 como uma ação inconstitucional. Uma interpretação totalmente equivocada que quer inserir parlamentares em questões que não são de suas atribuições. “Um PL cheio de fake News. Numa combinação dos artigos 48 e 231 da Constituição, o autor do PL defende que o Congresso está sendo excluído do processo de demarcações. Como se eles tivessem alguma coisa a ver com isso”.

Ele explica que não compete ao Congresso legislar sobre o que é ou não Terra Indígena. Apenas, sobre os procedimentos de demarcação, mas nos termos da lei.

“A demarcação é um ato técnico-científico, não um ato político. A Funai realiza o estudo e quem finaliza o processo é o presidente da República, que é quem homologa ou não. Mas aí vem um ato político, pois a demora já é um juízo sobre a demarcação”. Segundo o procurador, o último território a ser demarcado no Brasil foi no governo de Michel Temer, a Baía dos Guató, no Pantanal mato-grossense.

E ele ressalta que outra “fake news” do PL 490 corresponde à tentativa de alterar o Estatuto do Índio alegando que a Funai utiliza critérios subjetivos para a demarcação. Como dito, os critérios são técnico-científicos e estão previstos no Decreto 1.775. “Não há subjetividade nem discricionariedade da Funai na demarcação de Terras Indígenas”.

Para o procurador o PL 490 é uma caixa de pandora com seus apensos. “E todos visam atacar o Estatuto do Índio”.

Marco Temporal

Em debate no Supremo Tribunal Federal (STF) nesta semana, o Marco Temporal, tese que defende que os povos indígenas só podem reivindicar território onde estavam no dia 5 de outubro de 1988, data em que passou a vigorar a nova constituição brasileira.

O procurador explica que o Marco Temporal afeta a efetivação dos direitos territoriais indígenas, especialmente, no caso de povos que tiveram que se deslocar por pressões de invasores, por exemplo.

“A tese do Marco Temporal surgiu no julgamento do caso Raposa Serra do Sol. Mas, depois disso, o STF voltou a se debruçar sobre o assunto e disse outra coisa sobre os direitos territoriais indígenas: que eles existem e são reconhecidos desde a Constituição de 1934, bem como em leis anteriores e até em atos régios do período do império”.

A bancada ruralista tem interesse na definição que tem como base a data de 1988 para facilitar a exploração de territórios indígenas, dando lugar à pecuária, agricultura, extração de madeira e mineração, por exemplo.

Beto Marubo demonstra preocupação com qualquer decisão do judiciário, que esteja em consonância com os anseios do setor produtivo, pois muitos povos isolados ainda nem foram identificados para que seja provada sua existência. Há os que são nômades e no caso dos povos isolados do Vale do Javari, que compartilham território. Definindo quem tem direito ou não à terra, o Judiciário poderá extinguir muitos povos que estão totalmente alheios à realidade que a sociedade considera importante. Para ele, o Marco Temporal é mais uma desculpa de especuladores de terras públicas para retirar direitos constitucionais dos povos indígenas.

Desmatamento na TI Piripkura

Sobrevivência dos Piripkura, cercados por fazendas e madeireiras é tema do documentário Piripkura, de Bruno Jorge, Mariana Oliva e Renata Terra. Filme está disponível no Amazon Prime

O procurador da República, titular do Ofício de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais em Mato Grosso, Ricardo Pael Ardenghi, juntou ao bojo da Ação Civil Pública que pede proteção ao povo Piripkura mediante renovação urgente de restrição de uso e reintegração de posse -, o Relatório Técnico sobre Desmatamento e Invasões na Terra Indígena Piripkura, a Mais Desmatada do Ano de 2020, elaborado por pesquisadores das universidades Nacional de Brasília (UNB), Federal de Santa Catarina (UFSC), Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e Federal de Mato Grosso (UFMT).

No documento, os autores do estudo apontam que, de acordo com o Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o desmatamento acumulado na Terra Indígena Piripkura até 2019 era de 182,58 hectares, com uma estimativa para 2020 de 22,83 ha.

Porém, a realidade é bem diferente das estimativas. O Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), também do Inpe, emitiu alertas de desmatamento na Terra Indígena Piripkura de 877,97 ha e alertas de degradação florestal de 147,62 ha, no período de agosto de 2020 a março de 2021.

Outro dado alarmante, demonstrado pelo MPF na ação civil pública, fornecido pelo Sistema de Indicação por Radar de Desmatamento (Sirad), utilizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), é que uma nova área de desmatamento foi detectada. A área foi aberta em março de 2021, alcançando 518,8 ha, estimando-se a destruição de 298 mil árvores.

“E, é importante dizer, não se trata apenas de invasão oculta, pois, segundo levantamento da Operação Amazônia Nativa (Opan), existem 15 fazendas em atividade no interior da TI Piripkura (…). Todas estas fazendas estão sobrepostas à TI Piripkura. Da mesma forma, conforme dados do Simcar/MT, existem 60.958 ha registrados no CAR sobrepostos à Terra Indígena Piripikura, o que representa alarmante aumento de 182% se comparado com os dados de dezembro de 2019”, ressalta o procurador Ricardo Pael.

Já os dados do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), do Incra, revelam que há quatro imóveis sobrepostos à Terra Indígena Piripkura, com área total de 10.134 ha, enquanto que no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) são 28 os registros sobrepostos, totalizando 58.453 ha, um dos quais titularizado por Erineu Taveira, cujas autuações ambientais ultrapassam R$ 16 milhões.

“Tudo isso confirma a afirmação acima no sentido de que a iminência do vencimento do prazo da portaria de restrição de uso da Terra Indígena Piripkura, associada a atos do atual governo federal – como a edição da Instrução Normativa Funai 9 e declarações do presidente da República de que não demarcará terras indígenas -, acaba por criar indevida expectativa de que a portaria não será renovada, impulsionando as ocupações indevidas e o desmatamento ilegal”, conclui o procurador.