Dentre as 98 prisões registradas na última década, 66 eram mulheres sem-terra; Já as mulheres estão no grupo de maiores vítimas de estupros (Foto: Mídia Ninja)

 

Nos últimos dez anos, entre 2011 e 2020, um total de 1.814 mulheres sofreram algum tipo de violência no campo ao lutar por direito territorial e socioambiental. Ao todo 37 mulheres foram assassinadas e 77, vítimas de tentativa de homicídio. Outras 446 foram ameaçadas de morte.

Além desses crimes, são alvo de todo tipo de violência, como agressões, lesões corporais e prisões. Mas diferentes dos homens, humilhações que atingem sua moral e estupros costumam ser meios de perseguição e punição empregados contra seus corpos.

Esses dados constam em relatório da Comissão Pastoral da Terra que indica, em sua maioria, as mulheres vítimas da violência no campo são trabalhadoras rurais sem-terra, quilombolas e dos povos originários. As principais vítimas de estupros – dos 37 que constam em registros oficiais de uma década –  correspondem a esses dois últimos grupos.

Trinta desses estupros foram cometidos contra crianças e adolescentes da comunidade quilombola Kalunga, no estado de Goiás. Segundo a publicação anual do CPT, os envolvidos nesse tipo de crime foram fazendeiros, garimpeiros, membros do Poder Legislativo municipal e empresários.

Já as trabalhadoras rurais sem-terra aparecem em relevo no registro do maior número de prisões, indicando uma pressão do Estado sobre as mulheres quem defendem a reforma agrária e direitos à terra livre: de 98 mulheres presas, 66 eram sem-terra.

Numa análise dos dados, a professora de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e assessora jurídica popular Tatiana Emilia Dias Gomes realça a manutenção da desigualdade entre sexos, raças e classes.

Segundo a pesquisadora a região Norte do país acumula o maior contingente de violências letais contra as mulheres nos últimos dez anos, com mais intensidade no Pará. Mas ela não se explica por localidade e sim, pelo sentido que é dado aos bens ambientais e aos povos nela existentes.

A Floresta Amazônica, com mais intensidade a partir do século XX, converteu-se numa das principais fronteiras agropecuárias e minerais do país, capitaneada por agentes privados turbinados por crédito público: sojicultores, madeireiros, mineradoras e garimpos que devoram territórios e corpos, “corpo-territórios”.

De acordo com a análise de Tatiana com base nos preceitos de Frantz Fanon, o racismo tem por objeto não uma pessoa em particular, mas uma forma de  existir.

“São essas formas de existir, representadas por esses corpos-território, que morrem, são violentadas, detidas ou presas, como afirmação de uma racionalidade racista e genocida. Gênero não é sinônimo de mulher, da mesma forma que raça não é sinônimo da negritude. Análises em perspectiva interseccional devem considerar as relações desiguais entre os sexos, as raças e as classes”.

Ela também enfatiza que a ocorrência de estupros é uma fato que carece de atenção. “Violências sexuais contra mulheres constituem historicamente formas de controle patronal”. E que mulheres negras – crianças e adolescentes -, assim como de povos originários, continuam suportando as consequências sexuais de um processo em que não houve possibilidades igualitárias de existência para as três raças.

Ao concluir seu texto analítico, Tatiana propõe “a noção de patriarcado patronal branco para compreender uma racionalidade e como um ‘corpo elaborado de teorias e práticas’ que operam sobre os corpos das mulheres, notadamente negras e das etnias originárias, promovendo violências físicas interpessoais, mas também aniquilando seus projetos de mundo e existência, de modo a solapar outros caminhos possíveis, racionalidade essa que se articula com o devorar dos bens da natureza numa lógica de predação contínua e concentração veloz de riquezas, operando também na produção e na aplicação de instrumentos estatais de controle e punição quando as mulheres desafiam tais engrenagens, como foram os casos de prisões e detenções registrados pela CPT ao longo de sua missão de documentar os conflitos agrários e socioambientais”.

Região Norte concentra violência contra mulheres no campo

Dentre os números de assassinatos e tentativas, há uma concentração maior de casos na Região Norte do país, com 24 assassinatos e 40 tentativas. Em seguida, estão as regiões Nordeste e Centro-Oeste, com 5 assassinatos cada e, no caso das tentativas, foram 26 no Nordeste e 6 no Centro-Oeste. No Sudeste/Sul, foram registrados, respectivamente, 2 / 1 assassinatos e 3 / 2 tentativas.