A maloca coberta de palha foi decorada para receber a comunidade; a enfermeira viajou 1 hora até chegar (Mayara Abreu)

 

Por Mayara Abreu

Em um país pautado pelo racismo e negação de direitos, a vacina ainda é uma luta diária, mas aos poucos quilombolas estão conquistando a imunização. A força da ancestralidade é o motivo que faz esse povo guerreiro permanecer na luta para que seus direitos sejam garantidos.

O sonho que parecia tão distante, já tornou-se realidade em muitos quilombos do Brasil. Como na Comunidade de Ipanema, Abaetetuba (PA), onde moro. No dia 10 de junho recebemos a segunda dose de esperança. Os olhares e expressões falam por si só através dos registros.

Às 7 horas, vi passar de canoa os primeiros moradores rumo ao ponto de vacinação, uma maloca coberta de palha. Eles se apressavam em chegar, mesmo sabendo que esse grande momento estava marcado para as 08h30. A ansiedade do reencontro e de garantir lugar entre os primeiros da fila falou mais alto.

Não demorou muito para que o rio Ipanema virasse palco de um balé de embarcações já com as primeiras rabetinhas passando. Uma delas, trazia a enfermeira que viajou por uma hora da cidade à comunidade. O vai e vem dos barcos, rabudinhos e canoas, provocou nos rios uma dança de ondas. O barulho das embarcações, os gritos e falas dos que passavam no rio, ecoavam como um convite aos que ainda estavam em suas casas, para que também fossem vacinar.

Por trás do chamado havia muita expectativa de que os costumes e tradições da comunidade voltassem ao normal.

As novenas dos santos padroeiros da região, estavam paradas. Os encontros nas malocas feitas na beira dos rios já não eram mais os mesmos. As rodadas de café com pupunha, rosquinha e tapioca tiveram de ser interrompidas. O futebol no campinho no meio da mata estava com saudade dos seus atletas, os religiosos queriam novamente se reunir.

A comunidade sentia falta das danças, festejos locais. Até o rito dos velórios mudou. Antes da pandemia, a comunidade se reunia para vigília na casa da família enlutada como forma de doação e solidariedade. Retomar o cotidiano que vislumbrasse um certo ar de normalidade, era o motivo de tanta movimentação naquela manhã de quarta-feira.

O local de vacinação estava lindo, no porto os coloridos das embarcações brilhavam com o reflexo das águas, ao subir nas escadas feitas de madeira, deparei-me com um cenário deslumbrante, todo enfeitado a caráter quilombola – com pinturas e artesanato-, para receber os futuros imunizados.

Com os sorrisos ocultos pelas máscaras, eram os olhos que transmitiam as emoções quando as doses de esperança adentravam os braços de homens e mulheres resistentes. Foi ali que todos começaram a fazer planos para estarem juntos novamente.

A alegria naquele lugar era diferenciada, pois havia um tom de apreensão. Todos sabem que há muita gente brasileira a ser incluída. Eles comemoram que a vacina tenha chegado ao quilombo, mas com o espírito de comunhão que é comum a essas comunidades, a alegria só será completa quando todos os brasileiros se tornem prioridades, quando a dose de esperança chegar para todos!

Grupo prioritário

Os povos quilombolas estão entre os grupos prioritários da vacinação no país, graças a uma determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) que teve como base a Aquisição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 742, protocolada pela Conaq e por partidos políticos, em setembro de 2020.

O presidente da Associação dos Remanescentes Quilombolas das Ilhas de Abaetetuba (Arquia), Isaías Rodrigues ressaltou a importância da imunização na retomada das ações coletivas. “A pandemia atingiu muitos pontos culturais das nossas comunidades e rompeu muitos costumes ancestrais, então ela trouxe, além da proteção a vida, a esperança de que o nosso modo de viver volte a ser como antes, mesmo com algumas restrições”, diz cauteloso, afinal, o uso de máscaras continua sendo indicado.

Ao todo, foram encaminhadas 12.180 doses da Oxford/AstraZeneca para o município de Abaetetuba imunizar 17 comunidades tradicionais entre ilhas e ramais da cidade. Estima-se que 95% dos quilombolas tenham comparecido aos locais de vacinação. Os números são animadores, mas a aparente sensação de normalidade preocupa, como explica a moradora do quilombo de Ipanema, Claudiléa Santos.

“A pandemia ainda não acabou. Temos que continuar restringindo acesso de pessoas à comunidade. Temos que celebrar o que acontece hoje, pois estamos vacinados. Não é todo mundo que conseguiu isso. Agradeço a ciência e ao SUS”.

De acordo com o monitoramento autônomo realizado pela Conaq em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), até o dia 10 de junho – último levantamento – 287 vidas quilombolas haviam sido perdidas em decorrência a covid-19 e cinco óbitos aguardavam confirmação; 5.392 casos haviam sido confirmados e 1.487 casos permanecem sob monitoramento. O Pará é o estado que mais registrou mortes de quilombolas por covid-19 em relação a todo o país, com 83 vítimas.