Na TI Merure, do povo bororo, comunidade colheu a primeira safra de milho plantado com sementes doadas (Fepoimt)

 

No Pantanal, comunidades ribeirinhas e indígenas ainda se recuperam da devastação de seus territórios causada pelos incêndios florestais do ano passado, ao tempo em que estão vigilantes com a chegada do período mais crítico e propício ao fogo. Neste ano, agravado pela crise hídrica. O Rio Paraguai, que abastece o Pantanal, atingiu o nível mais baixo desde 1965 e está sendo atravessado a pé.

Nesse processo de recuperação, um grupo liderado por mulheres, o SOS Filhas do Pantanal e do Cerrado – associado ao Instituto Centro de Vida (ICV) -, têm sido essencial. Em maio, na Terra Indígena Merure, do povo bororo, por exemplo, foi possível colher a primeira safra do milho plantado com sementes doadas pelos dois parceiros, aliados também, à Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso – FEPOIMT, Operação Amazônia Nativa – OPAN e Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE.

Milhares de outras famílias vivenciam a mesma situação, com todos os esforços voltados para a reconstrução. Para isso, tem contado com a ajuda humanitária que os subsidia com ferramentas para o replantio das roças perdidas, novos equipamentos para combate ao fogo e para alimentar-se durante o período. No ano passado por exemplo, faltou até água potável.

Em entrevista ao Instituto Centro de Vida (ICV), Estevão Bororo Taukane, do povo Bororo relembra que diante da situação aterradora com a falta de alimentos, buscou ajuda do WWF-Brasil, em nome da Associação Indígena Bororo Tugo Baigare.

A partir dali um vínculo se formou, e a organização doou alimentos, mais de 80 ferramentas para a retomada dos roçados e lona para servir de telhado temporário às casas dos Bóe Bororo. Os itens que chegaram aos bororo fazem parte da ajuda humanitária de R$ 208 mil que o WWF-Brasil enviou ao Instituto Centro de Vida (ICV), entre dezembro de 2020 e março de 2021, para auxiliar comunidades atingidas pelo fogo.

Parceria com o SOS Filhas do Pantanal e do Cerrado

Para que a iniciativa atingisse o seu objetivo e contemplasse as populações mais fragilizadas, o ICV se aliou ao SOS Filhas do Pantanal e do Cerrado, projeto que nasceu espontaneamente pela união de associações de mulheres quilombolas, indígenas e das comunidades tradicionais pantaneiras, com articulação do Centro Cultural Casa das Pretas, do Instituto de Mulheres Negras do Mato Grosso (Imune). No total, 4 mil pessoas foram beneficiadas com a entrega de 900 cestas de alimentos e mais de 2 mil kits de higiene.

O SOS Filhas do Pantanal e do Cerrado teve início como um grupo de mulheres que queriam divulgar a cultura e a arte de seus povos. No entanto, com os incêndios que atingiram a todos da região, elas decidiram transformar uma live sobre arte, que já estava programada, em campanha solidária.

“As mulheres não tinham nem cabeça para a demanda cultural, o assunto era o fogo. Muitas etnias indígenas estavam de luto e nem poderiam fazer alguns rituais para apresentar sua cultura. Percebemos que era momento de aproveitar a live, realizada em 27 de setembro, para angariar fundos”, conta Paty Wolff, artista visual e uma das coordenadoras do Casa das Pretas.

O ICV passou a receber as doações em dinheiro e em produtos, inclusive as enviadas pelo WWF-Brasil e, juntamente com a Casa das Pretas, a organizar o repasse para o SOS Filhas do Pantanal e do Cerrado, representado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de Mato Grosso (Conaq-MT), pela Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso (Fepoimt) e pela Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras, que ficaram responsáveis pela distribuição.

“A logística é muito difícil, por estradas ruins. Também respeitamos a lógica de cada segmento. Essas instituições são muito representativas e conhecem as particularidades de todas as comunidades. Elas, então, traziam as demandas e levavam as doações”, diz Alice Thuault, diretora adjunta do ICV.

Por conta dessa dificuldade, por exemplo, o WWF-Brasil destinou verba para a contratação de um auxiliar de logística indígena, do povo Bakairi, para realizar a entrega de mais de 80 equipamentos para os Bororos, como carrinhos de mão, foices, enxadas, plantadeiras e outros instrumentos para que a comunidade pudesse voltar a plantar.

Prevenção possível

As queimadas são uma prática antiga na agricultura para limpar o terreno antes da plantação. Com o tempo seco, não é incomum que o fogo saia do controle.

“Nós conseguimos provar, com imagens da Nasa, a agência espacial norte-americana, que, na grande maioria dos casos, o fogo não teve origem nas comunidades onde fez mais vítimas”, conta Alice. Foi assim que o povo de Estevão Bororo Taukane se viu envolvido pelo incêndio. “Ele veio de fora e nos cercou. Não acreditávamos que chegaria, porque a Terra Indígena é cortada pelo rio São Lourenço, mas se alastrou”, lembra.

Assim como os bororo, grande parte da população da região do Pantanal e do Cerrado não estava preparada para fogo de tal magnitude. A ferramenta de monitoramento do ICV registrou mais de 26 mil focos no Pantanal e no Cerrado de Mato Grosso em 2020.

“O que a gente tinha de equipamento de combate a incêndio estava muito velho. Foi fruto de uma doação antiga. E o povo não sabia usar”, lembra Estevão.

Brigadas de combate a incêndios florestais

De janeiro a 27 de junho de 2021, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foram registrados mais de 5.500 focos de calor na região.

Para prevenir que uma situação similar a 2020 aconteça – ainda mais considerando-se que a seca este ano está pior que a do ano passado –, o ICV dedicou-se a fazer um levantamento sobre a quantidade de brigadas de combate a incêndios florestais. Em todo o estado, há apenas 110 identificadas até agora.

“É uma situação muito complicada, e agravada pela Covid, que impede mobilizações maiores. Qualquer controle de fogo precisa ser preparado com muita antecedência e isso não está sendo feito. Pretendemos apoiar brigadas com recursos arrecadados”, diz Alice. Melo, do WWF-Brasil, conta que a organização também está apoiando essa segunda fase do projeto, de formação de brigadas comunitárias, e na continuidade das doações de alimentos e água para as comunidades que ainda sofrem com o impacto do fogo em suas áreas produtivas.

Alice, do ICV, ressalta que a principal diferença dos atuais períodos de seca é que a estação chuvosa tem sido menos volumosa, o que não permite que as regiões alagadas do Pantanal se recuperem completamente. “Estamos vendo as consequências de um mundo mais quente, já assolado pela mudança climática”, analisa.

Crise climática

Estevão concorda e diz que muitas lagoas próximas à Terra Indígena estão secando. Por isso, vê a importância de articular seu povo para levantar uma grande discussão sobre a mudança climática. Esperançoso, ele, que é formado em sociologia, diz que a comunidade aprendeu com os desafios do ano passado e está pronta para o que chama de “reflorescimento social”.

“Temos muito a contribuir, em especial por meio de nossos jovens”, afirma, e cita o líder Bóe Bororo Josuel Iwagejeba, que fundou recentemente uma nova aldeia, a Guanandi, ao lado do córrego de mesmo nome, que na lingua Bóe Bororo chama-se Paweiau a três quilômetros de distância da Córrego Grande. “Três famílias estão começando essa aldeia e isso é uma referência simbólica de recomeço para o nosso povo. Eles estão ali para cuidar da água e manter sua qualidade para todos”, conclui.

(Com ICV)