Texto de Luiza Nobre

No levar da vida ribeirinha, que alinha terra e água, as tradições são fortalecidas por uma base sólida constituída de espiritualidade e conhecimento popular. O que de início era para explicar fenômenos da natureza, foi se fundindo no imaginário e tomando um espaço significativo nas comunidades de ribeira. O Amapá, assim como boa parte do Norte do Brasil, tem sua história mergulhada nas águas com a crença de que o fundo dos rios é habitado por seres míticos da floresta.  

As lendas folcloristas são histórias tidas como verdade nas regiões do interior, entre as lembranças dos que juram ter visto a Cobra Grande ou que dividiram o fumo com a Matinta Pereira. Narrativas essas que, ao se aproximarem do espaço urbano, perdem o encantamento para ocuparem o lugar de contos fictícios. “Aqui na aldeia não pode entrar no rio menstruada, se não a cobra grande vem e pega e a embucha”, explica Keila Palikur sobre a crença Cobra Grande, muito conhecida nas aldeias indígenas do Norte do Amapá. 

Os encantados, como são chamados, possuem características e estereótipos do povo amazônico, que em suas representações performam a imagem humana através do caboclo, indígena e ribeirinho. Protagonista de uma das míticas mais conhecidas do Brasil, o Boto, teve sua espécie ameaçada de extinção segundo a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas realizada pela IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza). Dentre as ameaças ao animal, a caça é uma das práticas que contribuem para a morte de cerca de 600 desses mamíferos por ano, motivada também pelo imaginário construído em  torno da lenda. 

Conta a lenda que, ao cair da noite, o boto deixa as águas do rio e se torna um homem, vestido de branco e usando chapéu para esconder um buraco de sua cabeça por onde respira. Frequentador de festas e bares, ele seduz mulheres para depois se relacionar com elas sexualmente antes do amanhecer. Uma narrativa que esconde em sua essência o silenciamento e justificativa para práticas de violência. 

“A gente sabe que acontece porque a gente sabe que elas engravidam”. A manipulação desse arquétipo faz dos filhos sem pai e gravidezes sem explicações se tornem uma geração de “filhos do boto”. O adultério, o estupro e a promiscuidade que cercam algumas vivências femininas nas regiões interioranas refletem na socialização da comunidade, que têm esse imaginário como elemento pedagógico para o controle da vida das pessoas. 

“A mulher, nessa interpretação, está subordinada ao homem por estar mais próxima à natureza enquanto eles estão mais próximos da cultura. A mulher menstrua, fica grávida, tem os cuidados da criação, e o homem é detentor dos poderes políticos, econômicos e está no espaço público de ação”, explica o antropólogo Dr. José Maria da Silva, professor da Universidade Federal do Amapá.

O que antes era entendido como mito, torna-se tradição e incorpora os costumes e passa a ser naturalizado pela moral de um povo sem noções claras e definidas das leis morais. O rompimento dessas barreiras é dificultado pela ausência de fiscalização e ação do estado, sobretudo da justiça nessas localidades. 

“A diferença que vejo, pela minha experiência de 18 anos na Magistratura do Amapá é que no interior a violência sexual é mais tolerada pela população, já que iniciam sexualmente muito cedo suas crianças”, pontua a juíza Larissa Antunes, coordenadora da companha Maio Laranja no Amapá, sobre a maior incidencia de casos nas regiões interioranas. 

O último Boletim Epistemológico da Secretaria de Vigilância, do Ministério da Saúde, constata que entre os anos 2011 e 2017 mais de 180 mil casos de violência sexual contra menores foram registrados no Brasil. 76,5% contra adolescentes e 31,5% contra crianças. Dentre as características comuns entre as vítimas, quase 75% delas são do sexo feminino. Em totalidade, 51,2% estão na faixa etária entre 1 e 5 anos de idade e em sua maioria crianças negras. 

O relatório do Disque Direitos Humanos de 2019, indica que três estados da região norte apresentaram crescimento significativo no percentual de denúncias de violência sexual praticada contra crianças e adolescentes. Roraima, liderando o ranking com um crescimento de 62,90% de 2018 para 2019, seguido pelo Amapá (54,48%) e Amazonas (41,59%). E ainda, que 11% do total de violações contra crianças e adolescentes no Brasil foram de violência sexual. Corroborando as preocupações referentes ao isolamento social, os dados demonstraram que 52% das violações ocorreram na casa da vítima e 20% foram praticadas na casa do suspeito. Assim, nos casos de violência sexual, pais e padrastos representaram 40% dos suspeitos, confirmando a caraterística de proximidade e convívio com a vítima.

Dentre as políticas de enfrentamento,  a busca ativa para combater a subnotificação de casos na pandemia, especialmente na região fronteiriça do “A subnotificação aumentou pela dificuldade das pessoas de acesso ao serviço pelo isolamento social e porque as crianças foram menos às escolas, que é um lugar onde os professores têm um olhar apurado para identificar os sinais”, ressaltou a juíza.

A história em primeira pessoa: a versão do Boto

Produzido a partir da Lei nº 14.017 Aldir Blanc de Incentivo à Cultura, via Edital “Seu Portuga” nº 003/2020 da Secretaria de Cultura do Estado do Amapá (SECULT), o curta-metragem “Como vai, seu Boto?” surgiu com a proposta de discutir outras perspectivas de uma das lendas mais populares da cultura nacional. “Eu queria que o projeto fosse algo interessante para as crianças perceberem as nuances de violência dentro da história do boto”, explica Mara Paula Marques, idealizadora, diretora e artista têxtil do projeto. 

No curta, já em idade avançada, o Seu Boto lembra dos velhos tempos em que se arrumava todo de branco e saía para seduzir mulheres à beira dos rios. Idoso e perto do fim da vida, ele reserva o tempo para brincar com seus netos, descansar em uma rede e conversar com amigos  no universo dos encantes, como a sereia Iara. Em um diálogo entre gerações, o ancião alerta para impostores que se passam por ele no mundo dos humanos para cometer crimes sexuais.

  Escolhemos um formato regionalista, desde a narração até os personagens, para adentrar a atmosfera do Norte, e que o público se identificasse pelas semelhanças”, pontua Maria Paula. Entre expressões regionais na narração do dramaturgo Jones Barsou, a forte marca de oralidade aproxima, com humor, do diálogo cotidiano do público alvo, as crianças e adolescentes do interior do Amapá, onde a ocorrência de casos de violência sexual infantil é maior.

Ao som da caixa de Marabaixo, manifestação cultural popular do Amapá, a animação bordada remonta a arquitetura ribeirinha e costumes das comunidades tradicionais em cada peça/cena. Com referências cartunescas, as ilustrações foram desenvolvidas e animadas pelo ilustrador Mario Melanin. “Na hora de construir o boto, precisei usar imagens de golfinhos como inspiração porque é difícil achar imagens de botos em que de para ver a anatomia”, falou o artista. 

“Aqui no Amapá nunca foi feito um trabalho audiovisual a partir dos bordados, e foi um desafio por não termos um referencial”. Em um processo que levou 3 meses de produção, o trabalho minucioso foi feito a quatro mãos, assinado pelas bordadeiras Ana Caroline e Maria Paula Marques, que juntas idealizaram as cores, pontos e formas das 8 peças base para a história.  

A pretensão da equipe agora é  expandir o projeto para ações nas escolas municipais de Macapá, levantando o debate sobre a proteção da infância dentro e fora da sala de aula.